"Um amor em estado de sítio"
Quando ele ia visitar a velha tia no interior, sempre pensava
que seria a última vez. Velha, no sentido cumulativo de experiências vividas nos
anos de trabalho, relacionamentos, desencontros, aprendizado, casinha, fogão, diários e solidão. Alcunha inevitável
àqueles que passam de quatro décadas de existência, estereótipo estampado por
quem acha que já bebeu da fonte da juventude, ficando imune à ação do
tempo-rei. Ele não sabia por quê, mas entrava naquele pequeno sítio com gosto
de saudade na boca, mas uma saudade do futuro, de coisas que pareciam se diluir
nos dias do presente, noção de breve encerramento. Mas o respeito era muito, em
função do tanto. Não que ela tivesse sido abandonada pela família, mas apenas
ele era quem frequentava aquele lugar, questão de valores, identidades, reconhecimento. Algo com que, ele
não mais se deparava na cidade grande. Chegava lá, tudo sempre lindo, arrumadinho
e limpo. Desde o jardim europeu, a horta, os animais, o riozinho, passando pela
decoração das salas no rancho, cozinha, banheiro e quartos. Alguém poderia
arriscar que ela todo dia esperava por outro alguém, tamanha a organização do
seu lar-aconchego. Mas este outro alguém nunca veio, era o que podia se perceber em seu
semblante. Dona Héstia, sentada em sua cadeira de balanço na varanda, naquela
manhãzinha de sábado, aproveitava a timidez do sol de fim de verão. Vista
cansada, seus óculos beirando o nariz como se fosse um trampolim, e o livro
abaixo em suas mãos, o mar: seus olhos, uma pessoa querendo mergulhar. Assim
foi, a vida toda. Um leve sorriso ao avistar o sobrinho, pois não era de
manifestar muitas alegrias, cuidava-se na exposição para que sempre houvesse
mais da outra parte. Abraçaram-se, ele puxou uma cadeira de vime, tirou o par
de tênis e iniciaram a prosa. Ela contou da semana, do tempo, do clima, dos
vizinhos que não foram lá, da chuva que alagou sua despensa, da TV que estragou
e não fez diferença. Ele disse sobre a cidade, outra semana igual, da falta
d’água, da briga com o irmão, do carro que enguiçou e o deixou na mão. Tinha ele uma enorme vontade
de morar ali, mas seu ofício lhe impedia. Pensava, quando fosse se aposentar, se
ela, a tia, ainda lá estaria, provavelmente não. Ele jamais ficava para o
almoço. Assim como tantos outros, nos fins de semana tinha compromissos mais importantes que
aquela doce e fraterna companhia afetiva, ao menos ele era o único que conseguia deixá-los para trás. Mas ela já sabia de tudo. Naquele
dia, ofereceu-lhe um bolo de pão de ló, era o deleite do seu afilhado. Junto com um
cafezinho preto, coado feito tropeiro, remetendo à saudosa infância, através dos
cheiros, dos sabores, dos visuais, do momento. Tempo em que as famílias não
eram com pH, ou seja, não tinham indicadores de acidez. Depois da refeição, agradeceu e foi-se embora, sem certeza de que
voltaria. Havia um dilema: ele não sabia se ia lá por causa dela ou por causa
do bolo. Os bolos eram feito poemas. Mas a tia era um respeitoso vínculo afetivo, entretanto ela fazia
excelentes bolos. Quando ela não fazia, ele não se demorava. Cruel, tal hesitação. Sentia quase uma pena dela, uma pessoa tão legal, mulher tão bonita, recolhida à solitude de seu interior: mas era opcional, então não cabia dó. Pessoas podem perfeitamente ter amor, sem precisar compartilhá-lo. Vai ver que ela distribuía esse amor, por tudo aquilo que havia em seu sitio, sua morada: o jardim europeu, a horta, os animais, o riozinho, as salas do rancho, cozinha, banheiro, quartos e, principalmente, a varanda.. A varanda, seu ponto de encontros e ausências, chegadas e partidas, conversas e reflexões, silêncios e diário, cafés e bolos. À noitinha, já em casa e sem almoçar, ainda com gostinho de vida na boca, ele pensou
o que seria daqueles bolos se ele não fosse regularmente degustá-los. Então ele logo concluiu:
o que importava para a tia, era fazê-los. Sem esperar por nada, não era necessário.
Ela provava alguns pedaços. O restante guardava, talvez alguém aparecesse em sua casa e apreciasse o que ela tinha de bom. Da sobra, os animaizinhos se incumbiam, quase sempre. Pois ninguém passava
por lá. O mundo contemporâneo era longe dali. As pessoas inverteram a natureza. Mas dona Héstia era feliz. Quando ela pensava em chorar, ia imediatamente regar flores, tomar um banho de rio, ou sair descalça na grama sob a chuva. As outras pessoas, perderam-se da natureza. Dona Héstia era feliz, porque ela tinha
consciência disso...
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