terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Companheira de Alta Luz


E enfim, ele saiu do mundo. Rompeu a bolsa, quebrou a casca, derrubou o portão, como quiserem. Saiu daquilo que pensava que era o mundo. Mas não, aquilo não era o mundo inteiro, era apenas o seu mundo, o mundo só dele e o pior: dele só. A tradição, a conjuntura, as circunstâncias, todas essas banalidades que elegemos fundamentais por educação, caíram então por terra, de tão leves e emboloradas, não tarda descobrirmos seu caráter acessório, compatível com o plano das justificativas. Seriam os deuses astronautas ou seria aquilo o que chamam de viver? Sobre o viver, em seu caso, era mesmo uma justaposição: sobrevida. Um sol amarelo, um céu acinzentado e um verde desbotado em vida praticamente black-tie. Sem cores, a natureza ao seu redor de tão surreal lhe parecia uma ficção. Um imaginário com tons de pesadelo, o sono também era fuga. E como fugir de um labirinto cuja construção teve uma só porta e de entrada? Até que a rotina cravou punhal na consciência, e ele viu o próprio sangue no chão do pensamento. Olhou pela janela, e viu todos que abandonara ao jamais, ali  estavam, à beira do porvir.  Era hora da mudança. Haveria de vir da esperança, uma amazona que não conseguimos enxergar, mas traz em seu alforje, uma ideia chamada paz. Algo que permeia, precipita e incendeia. E quando atinge a consciência, percebe-se que a vida está lá fora. Que a representação trintenária nunca foi espetáculo, o teatro estava abandonado, pelo insustentável roteiro do desamor. Somos humanos. E merecemos paz, uma vida melhor ao invés de sobrevivência cênica. Então, deveria haver outro mundo, melhor que aquele. As asas, o rompimento, e o voo de coração. A transformação, embora progressiva, já demonstra a transposição para um novo espaço, também nesse ponto do texto. De coadjuvante das conveniências alheias, passou a protagonista da sua própria felicidade, com pleonasmo merecido. Sim, ele renasceu. Aquela tal sobrevida, sofreu aborto espontâneo, natural, coisa do destino. Um novo tempo. E por respeito à criação, agora é aguardar uma determinada semente brotar e voltar-se para ele, virá que eu vi.  Livre e nu, corre hoje pelo país com argumentos de sobra, para quem quiser ouvi-lo. Graças à conspiração – conjunção de fatores energéticos que orientam uma emancipação – ele segue ao lado de alguém semelhante. Sim, houve anunciação, e legítima. Sem importar se ontem a bruma era leve, eles hoje brincam felizes no mesmo quintal. Alaranjado é o sol, verde o limão, azul o céu, vermelho o camarão, todas as cores no tempo que virou uma eterna estação. A libertação é triunfante, fundamentalmente pela reciprocidade da companhia. Nas belas águas da Paraíba, ele a presenteia com o belo e lírico epíteto: “Companheira de Alta Luz”. 

 Companheira de Alta Luz - Zé Ramalho