segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Crônica Medonha



Medo. Uma pequena palavra, rebelde, pois não se contenta em ser um reles substantivo indicador de um estado emocional diante do perigo, tem ela uma enorme ambição de ser um diagnóstico. Daquelas situações onde a interpretação se perde no espaço, tão extensiva e alucinada, abandonando a própria falta de sustentação que sua superficialidade imediatista possui. Não passa de uma justificativa, aplicada a vários casos, inclusive aos idiopáticos (sem causa aparente), por aqueles preguiçosos de refletir, a turma sempre pronta da solucionática, da gambiarra, sem pestanejar. Qualquer coisa, respondem que é por “medo”. Não me junto a eles, pois quando escrevo (e não falo) 'medo', o faço poeticamente, em sentido lírico, jamais analítico. Repare, caro leitor, o número de pessoas ao seu redor, respondendo que o "medo" é a causa de todas as (in)consequências, dos (des)caminhos, das (a)normalidades dos outros. Para que plano de saúde? Para que consultórios psiquiátricos ou psicológicos? Medo, está aí, em todas as pharmácias, bankinhas e lojaz de departamentos, em forma de amostras grátis, para você levar para onde quiser e jogar em cima da mesa dos jogadores da vida: "Bingo! Você ganhou!". Puxa, que cara inteligente, como ele sabe que aquela guria tem medo? É mesmo, vou na dele. E assim caminha a humanidade, de carona com os rasos, os perfunctórios, os frívolos, todos superficialistas. Não, gente, não é assim. Penso que o medo é uma hesitação diante do desconhecido, ou uma aversão frente ao conhecido. Só isso, não se vai além. Certa feita, uma senhora disse a um rapaz que ele não iria para frente em sua profissão porque ele tinha medo: ela ignorava que ele precisava capital inicial para desenvolver seu trabalho. Noutra feita, alguém disse que uma moça não namorava com um sujeito porque tinha medo: ignorava que ela apenas não via identidade nele. Ou naquela vez em que um senhor dissera que o seu filho não lhe procurava mais porque tinha medo de ouvir algumas verdades: ignorava que ele não tinha amor pelo pai. A criança tem medo dos monstros, até descobrir que eles não existem. O adolescente tem medo do sexo, até descobrir que é fácil. O jovem tem medo de dirigir, até descobrir que torna-se reflexo involuntário. O adulto tem medo do desemprego. O idoso, do abandono. Outros, de avião, barata, palhaço, borboleta, nadar, ladrão, políticos. Todas as formas reais de medo, são condicionais. Precisam de uma referência, uma base, uma razão paralela que permita sua existência. Assim como uma ponte depende de dois pontos de terra em seus extremos. Vamos raciocinar mais e parar de dizer que as interrupções ou as estagnações viventes são causadas pelo medo. Façamos uso dele como devemos fazer com o sal de cozinha: prudentemente. Com restrição, respeitando os verdadeiros medos; e sem banalização, até porque temos que preservar os mistérios, outra dimensão. Um último exemplo: amar deve ser tão bom, por que as pessoas teriam medo de amar? É um contrassenso. Um paradoxo, baita contradição. Fulana disse a Sicrano que ele tinha medo de amá-la: ela ignorou que ele não acredita em amor. Andando um pouco mais, vimos que Beldriana não se relaciona com Sicrano não pelo medo, mas simplesmente porque não tem vontade, e pronto! Tudo bem, a vida urge, o dia corre, não temos tempo para filosofar. Os relacionamentos humanos estão se moldando nos fast-food: deixe sua opinião (engula rápido) e mova-se daqui. Reflexão, pensamento, contextualização, tudo isso é coisa para os vagarosos da vida. Detalhe é que estes, os cágados humanos, quase nunca se acidentam. O medo, é o endereço de uma caverna onde quem acusa, jamais saberia chegar lá... 

Pequeno Mapa do Tempo - Belchior - por Lorena Nunes 



domingo, 29 de outubro de 2017

Clube nº Zero


Então ela veio. Isto é, ela foi lá. Se isso partiu do passado ou do presente, ninguém sabe, chegou atemporal. Ele a recebeu, com humildade e educação, mais um tantinho assim de humor. Depois daquele encontro matinal na padaria, ela insistira em revê-lo, desistiu, ele hesitou até onde pôde. Pois lhe devia uma satisfação, em função do passado, haveria um dia de revelar seu presente a ela. Até porque os reencontros de hoje em dia, qualquer seja o nível relacional, são cheios de falsidades e mentiras de um para o outro, sempre dizem que vão lhe procurar; e nada, e nunca. Passou o tempo e quase uma centena de fornadas, ele mandou mensagem, talvez fosse a hora. Ela foi lá. Ele já sabia de tudo. Mas algumas coisas o impressionaram. Ele sabia que ela estava na procura de uma companhia, para um relacionamento sério, mas não íntimo e discreto como dizia outra música. Ao passo que ela foi contando as razões de seu drama, ele ia conferindo de perto uma dessas pessoas que tem amor para dar. Coisa estranha a ele. Muito. Pessoas que têm o coração volume, forte e delicado, aberto, convidando alguém para entrar porque há um lugar em sua "casa" para tanto. É uma espécie de pré-disposição. Ele até falou a ela que via isso com preocupação, pois ela poderia, desse jeito, se decepcionar com muita gente, tão diversos são os interesses atuais. Sites de relacionamento? Nem pensar, mas ela frequentava. Ele viu que não era medo da parte dela, era sim uma necessidade de ter alguém ao lado, para dividir o cotidiano, o cinema, a cama e as noites vazias da capital. Coragem, ela tinha de sobra. E mais: ela merece alguém à sua altura, faz por onde a danada. Impressionante o quanto é carinhosa. Seus braços e mãos e pernas, cobertos por uma pele sedosa, uma boca refrescante, saliva Ouro Fino, toques adultos partindo do corpo de moça. Uma mulher ativa, até na horizontal. Quem não quer uma mulher assim? Ele. Porque a diferença é abissal, entre o desejo dela em ter alguém, e o dele em permanecer sozinho. É difícil ela entender que, uma mulher com tantos predicados, atitude e amor para dar, não seja de interesse dele. Ele explicou, meio que superficialmente, que a solidão lhe ensinara muito, mas tanto, que até resolveu oficializá-la como companhia. Não chega a ser loucura ter a solidão como companheira, mas passa perto. Ele não sabe namorar. Até a prática na cama não foi a contento. Mas ambos gozaram e riram. Ela se arrumou e foi embora lá pelas quatro da manhã de sábado. Ele, mais uma vez, confirmou sua tese de que aparece na vida das pessoas para lhes fazer um favor, um conselho importante, uma sugestão progressista, alertar sobre um descaminho, apontar um endereço certo. Não foi diferente, indicou a ela uma terapia alternativa, pediu retorno, não teve. Sempre assim. Ele, equivocadamente, se acha no direito de interferir (mesmo que por sugestão) na vida alheia, não obstante seja ainda um profissional da saúde e estudioso no assunto. Novamente, não deu certo. Já foi o quarto caso, sem feeback algum. Pelo menos, ele tentava. E ela, de outro jeito. Ele mudou um pouco sua opinião sobre os buscadores. Aqueles que não o fazem por medo, merecem compreensão. Ela, é que deve ter mudado de opinião sobre os céticos, melhor: reforçado. Num dado instante, ela disse “vou te conquistar”. Ele pensou baixinho “o faça com quem tenha amor pra dar.” Arriscou falar isso, em palavras semelhantes. Para bons entendedores, meia noite basta. Podem ser amigos, por quê não? Há filhos que nascem com anencefalia, e vivem um pouco; ele não tem mais coração, e sobrevive muito. Ele respeita o sonho dela, foi sincero em relação ao futuro. Ela respeita a insônia dele, foi sincera em relação ao presente. A liga se fez adulta, descompromissada, honesta. Ambições emocionais diferentes. Que bom que ela entendeu. Que bom que ela riu. Que ela gozou e que ela surgiu. Pois ele confirmou que nem diante de um amor em potencial, consegue ter força de união. Van der Waals, pontes de hidrogênio, dipolares, tudo isso para ele ficou no cursinho. Ela, professora primária, ele sem pós-graduação. Ela, um sentimento em semente, ele um jardim estéril. Ela, uma só esperança, ele um só desamor. Ela levou seu conselho para a casa. Ele se sentiu honrado pela visita de um enorme coração. A "casa" dele, é muito pequena, é cômodo para um só, é lar apenas para uma solidão. O reencontro não foi a toa porque eles, tão diferentes, compartilham a mesma música número 1. Ela vai encontrar seu par. Ele já se identificou singular. Tudo porque, enquanto ela ainda se chama moça, ele um dia se chamava homem... 

Clube da Esquina nº 2 - Lô Borges & Milton Nascimento




terça-feira, 24 de outubro de 2017

penLamentos













Posso fazer algo comum, mas de uma forma diferente. Posso deixar que pareça, eu não me importo se os outros molham seus pés no rasinho ou mergulham no mar; eles são eles e só, aprendi na vida e na música, não sei com a qual me deparei primeiro. Segunda-feira pela manhã, clima tipicamente choroso de garoas, aquele frio que não me alcança. De manga de camisa (ou vice-versa), adentrarei ao Municipal, meu quartier brasileiro da paz mundial. Fiz isso umas quatro vezes no passado, é hora de voltar. Ignorarei as poças e as pessoas estranhas que estarão lá, pois eu também sou assim para elas, talvez mais. Na capela da família, do lado de fora, algum relevo de cimento me sustentará sem guarda-chuva. E eu soltarei o verbo, dentro de mim, em silêncio. Ali, e só ali, a reflexão é mais intensa. Diferente do mar e da floresta, cada qual com sua energia ambiental. Não tardará e as lágrimas irão se misturar com a chuva, a garoa. Alguns minutos de meditação, um papo imaginário com um amigo que se foi antes de nos tornarmos amigos. E pronto. A floresta está longe, o mar também e só deu tempo de ir ao cemitério. Eu não sei rezar. Sei cantar, mas é para mim mesmo. Costumo olhar para o céu e para as lápides das famílias vizinhas, pensando quanta gente já passou por aqui. E quanta gente nem vem aqui. Quanta gente processa de outras maneiras seus ‘penlamentos’*, e quanta gente deixa estar. Após o alívio imediato e algumas saudações imaginosas, vou passear na alameda central, sob os cedros, coisa que adoro, longe de qualquer atividade semelhante a comunidades paralelas da sociedade notívaga. Leio o bronze dos túmulos, só os interessantes, de simples ou de exagerada arquitetura, cujo destino é sempre igual, muda somente o teor do legado. Desnudado da armadura urbana lá de fora, eu atravesso a história da cidade, cruzo o tempo das famílias, e sempre concluo que o local não passa de um enorme hotel de trânsito, um trânsito simbólico, onde podemos voltar e simbolicamente louvar quem quer que queiramos. Nem precisa louvar, basta uma daquelas saudações. Ou apenas uma visita, rápida que seja, não é obrigatório trazer flores. Quanto mais simples, melhor. Igualmente ao que deveria ocorrer entre vivos. Mas cada um sabe o que faz de sua história, de seu tempo. Cada um sabe o que faz na sua quadra, em sua cidade. E também, aquilo que não faz. Reconhecer, eis a questão... 

*penlamentos: reflexões sentimentais sobre aquilo que não aconteceu. 



segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Flavinha Sem Fronteiras

                                          

 Flavinha Sem Fronteiras 

 Esperar secarem um pouco as poças nos olhos neste dia onde o sol nasceu branco. Da cor do meu sapatenis que há anos não usava e calço logo hoje. Da cor da esclerótica humana que sustenta a sempre menina dos teus olhos castanhos, e da cor do teu tão almejado jaleco. 
 Vamos lá, correr um pouco atrás das palavras. Resignação? Desapego? Abdicação? Ou seria determinação, dedicação, animus? Vamos Aurélio, Houaiss, Michaelis, Priberam! Abram suas gordas páginas e pincem um símbolo de nossa rica língua pátria que possa nos ajudar neste momento! Mas tragam-me um significado, não quero os costumeiros e banais significantes fonéticos ou gráficos, todos superficiais, eu quero é a metafísica da coisa! 
 Sim, alguém nos explique este divisor de águas que choveu em forma de luz na manhã de hoje. Seria fim de uma fase ou princípio de outra? Como discernir se envolve uma só pessoa? O que morre e o que nasce neste mágico instante dentro e fora de ti? Há solução de continuidade? Não. Nada disso. Penso que algo se transforma, internamente e ao teu redor.
 Primeiro, a escolha de um caminho. Mas há vários tipos de escolhas. Desde as aleatórias, as impostas, as condicionais, as eliminatórias, até as propriamente ditas. Estas, como foi a tua, são de livre e espontânea vontade, sem influência externa: tu escolheste. Vou te contar, que há tempos eu já era parabenizado, pois já diziam em relação a ti, que “ela já saber o que quer”. 
 Não importa quando teu sonho começou, tentarei explicar. Se foi lá na década de 90 com aquela fantasia de Médica e um kit, com os quais tu fazias auscultação e diagnosticavas doenças em bonecas, as quais ficavam imediatamente sem roupa como se tivessem todas, sem exceção, indo para um centro cirúrgico para procedimento de urgência, sob teus cuidados. Se foi no início do século, quando tu trocavas diariamente aqueles curativos em meus dois joelhos operados ao mesmo tempo. Ou ainda, se foi nesta década quando tu acompanhaste a primeira cirurgia ao vivo. Em meio a isso tudo, a preocupação com a gripe de Edna no comercial de TV, a redação com o fígado batido com um antebraço no liquidificador e os capítulos sanguinolentos de CSI. Como antigamente, ao operar coelhos de pelúcia com auxílio da instrumentadora-irmã Gabriela, ou recentemente, sentindo-se em casa no Marcelino Champagnat ao extirpar suas próprias amígdalas. Tudo isso – fora o que aqui não coube – já era muito mais do que mera anunciação ou indicação, posto que eram fatos que iam construindo paulatinamente o futuro profissional que hoje te formata como pessoa humana, e não para, e segue ininterrupto, desenvolto a cada dia, e tomara que repousante a cada noite que vier. 
 De lá para cá, tentar imaginar o que se passava em tua cabecinha em relação ao teu ofício, era coisa para íntimos. Dizemos nós, os sabedores de ti, que tudo se resumia a uma questão de tempo: quem te conhece, não tardaria em te parabenizar pela tua conquista. Já sabíamos o por que e o como, só faltava o quando e onde. Na vida, cara Flávia, não existe sorte nem azar. Pois a vida não é loteria, tampouco um jogo qualquer. O fato de existirem vitoriosos e perdedores, aproxima erroneamente a vida do caráter de acaso, mas não significa que ela seja um tabuleiro, as pessoas peças e o metal seus dados. Não mesmo. Todo processo bem vindo, é construído, fase a fase, mesmo que duradouro, jamais tardio. 
 A vida é isso aí, levando em conta tudo aquilo que viveste até hoje. Dia por dia, noite por noite, dor por dor, alívio por alívio. Ninguém melhor do que tu para avaliar com precisão absoluta os obstáculos que superaste para te encontrares hoje neste ponto desta profícua caminhada. As primeiras provas, as colegas passando, as amizades se liquefazendo, e tu assumindo com altivez o limbo que é próprio dos vestibulandos. Os recomeços dos cursinhos, as apostilas, o cafezinho no Omar, os shakes, as aulas da Sol a pino, o Itupava-Cohab, o Detran-Vicente Machado, tudo igual, de janeiro a janeiro como diz a música. E tu lá, impávida, como se fosse sempre um novo verão. Jamais considere que ficaste para trás, pois os anos que usaste para qualificar-te à nobre intentada, resumem-se a nada diante da grandeza da vitória que é a realização de um sonho. Melhor dizendo, serviram de alimento e água para a chegada até aqui, sendo homérico reconhecê-los, não obstante, não existam mais.  
 Poderíamos mergulhar fundo e apontar todas as mazelas abissais dessa época, a ponto de que tu relevaste ainda mais o trunfo. Mas não é preciso, também porque é coisa tua, como já disse. A questão, a partir de agora, é paradigmática. A tua transição paradigmática. Não consideres uma nova época em tua vida, mas sim uma nova vida dentro do teu tempo. Tudo mudará se transformando, a partir de tua visão das coisas do mundo, agora ampliada pois tomada será de outros pontos de vista, principalmente, o acadêmico. Novos colegas, novas amizades, novos professores, bons e maus, tu encontrarás de tudo, pois a espécie dominante é a do homem/mulher/trans/cis/etc, nem todos sapiens. 
 Em momento de festa, pensa que essa manifestação é um grande bolo de parabéns, e os docinhos vêm a seguir, em forma de conselhos. 
- Não esperes reconhecimento de ninguém, atribuir valor ao teu trabalho é competência exclusivamente tua. 
- Não esperes ajuda de ninguém, o teu dever será reflexo somente de tua capacidade. 
- Escolhe a critério justo tuas companhias, pois nem todas estarão lá pelos mesmos motivos (sonho) e objetivos (realização) teus. 
- Dedica-te ao máximo que puderes à faculdade, para que depois, no exercício da profissão, trabalhes com sabedoria, segurança e retidão. 
- Desenvolve sobretudo aquilo que chamam de consciência social, pois tua preparação/formação também será voltada para diagnóstico, tratamento e cura dos menos favorecidos, ou seja, dos que mais precisam de ti, os cidadãos do mundo. 
- Mantém como tua conduta, o equilíbrio, a serenidade, a humildade e a verdade para com o próximo, sempre considerando o binômio tempo e espaço, inclusive no tocante ao sigilo profissional. 
- Não desanimes, diante das novas formas de obstáculos que surgirão em tua estrada: teu conteúdo, congênito e adquirido, será o instrumento para ultrapassá-los com maestria.  
- Lembra que a Medicina é uma Arte. E como disse Nietzsche, “Temos a Arte para não morrer da verdade.” 
- Estuda a fundo a Ética. Ela é a maior e melhor condutora dos profissionais no sentido de superação de todas e quaisquer fronteiras... 

Um beijo, saúde, felicidades e continuidade em teu sucesso.
Eduardo, seu Papão Lixa.

Ps:   há mais valores nestas poucas linhas, do que a nossa vã racionalidade possa desconfiar...
(o restante, tens no sangue)


Curitiba, 17 a 23 de outubro de 2017.



sábado, 21 de outubro de 2017

ELEGIA 666



 ELEGIA 666 
Acreditas na conspiração? A começar pela pergunta deste apócrifo texto que te remetes à reflexão que tu evitas praticar nesses dias mortos de nossa felicidade. Sim, uma força não estranha que move as coisas ao teu pasmado redor, contextualizando fatos cujas fotos tu não tiraste por preguiça ou omissão. Interjeição, como era grande. Em ti, que adoravas aquela pessoa física bela da qual não pediste CPF antes – o estelionatário da Urca – tornando-se encharcado vetor de uma das menos perigosas DSTs que ofertaste em gemidos ao próximo, o pouco belo e muito inteligente professor de História Natural. Tal assepsia, foi o princípio. Um passado descuidado, então lavado e levado por um mutirão de pessoas invisíveis que vieram trazer o saneamento básico de que nunca ouviste falar. Esquece-te, definitivamente! Poxa, Osho já disse isso tantas vezes! Será que não havia alguém por perto de ti que te desse essa dica? Não, pois todos eles estão conectados à modernidade, esse negócio de pensamento é bobagem de filósofos, a pseudogente que insiste em interpretar o mundo além dos olhos coloridos, das roupas de grife e da arrebentação marinha. Prima-te pelo zelo ao teu sonho para que não seja pesadelo, sempre com aquele que nem poderia ter sido um dia. Não sejas refém de alguém, liberta-te pelo janelão do azul e alça-te ao mais longínquo quilômetro alcançado por Fernão. Lá, bem de cima dos teus obstáculos, verás que teus filhos estão na luta, mesmo que bem pouco por ti. Faz do amanhã 21, o primeiro metro quadrado de calçada onde possa ires e voltares quando for abrigo. De nada adianta tal conspiração, tal força, tal coisa, se tu ainda mantiveres abertos os livros do pretérito na estante e pó. A morte não avisa, mas a chance sim. Todos os dias correm avisos pelo vento, às vezes em forma de meteoros oriônidas, quando a necessidade humana se faz mais presente. Tira teu Borsalino e olha para o céu, meu amor de mentirinha, porque a besta telúrica sou eu.. 


segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Eu Também


Deu no rádio agora de manhãzinha, atropelaram a muda quando ela foi atravessar a BR na Lapa, corpo tão desfigurado que só sobraram os documentos, Maria Luísa dos Santos, o motorista assassino fugiu. Fiz isso com três cães em minha vida, sempre à noite, ou eles morriam ou eu capotava. Nem parei, os que vinham atrás de mim não parariam para mim, eu me misturaria aos cães. Qual a diferença entre mim e o motorista de ontem à noite? Não sei ao certo, acho que ambos somos criminosos contra seres vivos. A muda gemeu, os cães latiram, mas os veículos seguiram a mais de cem quilômetros por hora. Maria Luisa não conseguiu ir além dos seus vinte e poucos anos, quem sabe arriscar-se assim foi um jeito de ela gritar pela primeira vez ao mundo, pela boca de um jornal sensacionalista. Fiquei pensando, caso ela falasse, o que diria ao se aproximar da estrada noturna. Mas ela não diria nada, pois era surda-muda, ela nem ouviu o carro. Fiquei pensando nas pessoas que não são deficientes auditivos, por quais razões não fazem o uso da voz. Não é por economia, eu sei. E também naquelas pessoas que têm voz, mas apenas escrevem. Nem sei por quê não é. Entretanto, a relação do ser humano com o mundo ao seu redor, é um tanto desrespeitada por algumas pessoas que mergulham naquele redor alheio, como se o indivíduo fosse uma ilha. Boiam e falam, imergem e escrevem, sobre o outro em sua pequena porção terrestre em meio à infinitude marinha. Eu faço isso. Tenho uma voz modéstia parte agradável à coxa do ouvido delas, mas tenebrosa quando gravada. É por isso que escrevo. Não me gravo cantando. Mas posso reler-me, escrevendo. Doutro lado, o mundo anda complicado, não se pode mais ficar quieto, chega gente para incomodar os silentes, acalmados, serenos e tranquilos. Novas casas estão sendo construídas sem campainha. Lá dentro, não há mais telefone fixo, a desculpa de que o celular estava carregando é ótima. Mas o povo insiste contra a hibernação voluntária e temporária. Até os pássaros estão incomodando-os, invadindo seus lares-repouso incitando-os à ação. Os pássaros que também não falam, porque piam, é o que coube a eles. Mas nossos encolhidos & quietinhos interpretam que os pássaros são mensageiros, do bico deixam e levam encomendas, presentes, recados ou algo semelhante. E recolhem-se cada vez mais em sua casamata, sua casa na mata. E esperam o mensageiro sair, fecham as janelas, os olhos, a boca, as coxas e o coração... 

Tutorial – já que é assim, louvemos a passarada, numa das mais belas músicas do cancioneiro brasileiro.. 
"Cheiro de Mato" - Fátima Guedes - Cantora Luss 



iPhone N




A ciência já avisa que, num futuro próximo, o homem viverá dentro do seu próprio computador. Atravessamos hoje, uma fase de transição na qual a tecnologia já estabeleceu uma relação de dependência psíquica entre ele e o smartphone. Ainda podemos ver as pessoas totalmente conectadas aos aparelhos em suas mãos, não importa onde estejam. Mas virá o dia em que a vida, inteira, vinte e quatro horas por dia, se desenvolverá dentro dele. Longe dele, não haverá vida. O trabalho, a família, a escola, as instituições, tudo estará acessível às digitais humanas que controlam ou não os sistemas Android & outros, vice-versa. De social, a inserção passará a ser digital. Inserção digital. Conhecer pessoas, arrumar emprego, água, alimentos, conversas, compras, viagens, diversão, tudo por ali. A TV e os home theaters nos iniciaram na clausura domiciliar, no confinamento, manipulado pelos grandes meios de comunicação. Precisava algo mais forte para fazer valer ou consolidar a mudança paradigmática que abandonou a consciência. Está aí. A web e sua grande rede mundial. Já que eu não posso ir à África, o teclado me leva até lá. Vou e volto como se tivesse ido, pois a mecanicidade da coisa desvalorizará o fator presencial. Muitos outros valores se perderão no tempo, pela mudança de espaço, agora dimensional. Aquilo que faltar, as impressoras de última geração modelarão em instantes à sua frente, em resinas, siliconas ou elastômeros multi-D. Você pode visitar alguém entrando em uma de suas redes sociais. Se tiver saudade, mande mensagem. Você pode projetar uma foto sua aos pés da Torre Eiffel, não vão saber que você apenas mexeu os dedos para isso. Morrerão o Turismo, as lembrancinhas e o diálogo interpessoal. A coisa chegará num ponto em que o Direito também morrerá, bem como as outras ciências então obsoletas. Haverá liberdade plena para se fazer o que se quiser na internet, por simples falta de controle. Num futuro próximo, você poderá amar sem sair de casa. Até porque amar já não será mais importante, a moda será o amor digital. Descompromissado, posto que é desconhecido. Ame quem quiser. Furte suas imagens, monte realidades virtuais em seus programas Windows com a pessoa que bem entender. O mundo aceitará esse tipo de sentimento. Só esse. Caso você apareça num restaurante segurando a mão de alguém, será considerado antigo, ultrapassado, démodé, esquisito, velho. Inventarão um jeito informático para que você demonstre sua monogamia, fidelidade, uma espécie de identidade artificial que o ligue a uma companhia, uma espécie de webcam registradora e compulsória. Não convém espalhar vírus pelos computadores. Isso evitará a promiscuidade mas não pelo caráter moral, e sim para não danificar os bites que lhe dominam. Mas não se preocupe, as relações serão bem mais tranquilas. Sem palavras orais, as teclas as substituirão. Você balançará na rede do enter ao del. Opções infinitas. É muito mais fácil viver sem valores, princípios ou virtudes. Mas prepare-se: você nunca mais será tocado por alguém. Morrerão os abraços, os beijos e os olhares. Vamos lá, digite uma boa noite para aquela morena que você ama. Depois, vá sonhar com um mundo em que já não fosse cibernético assim. Um mundo onde prevalecesse aquela coisa antiga, ultrapassada, démodé, esquisita e velha chamada natureza... 


Intensa Tez






domingo, 15 de outubro de 2017

Vasto Vazio












Friozinho dominical na terra dos pinguins brasiliensis, ceroula e a mais bonita camisa de pijama da cidade. Bicho solto, como se precisasse; meias, em homenagens às mulheres que não vêm mais aqui, ou às que estão por aí. Cafezinho com marca experimental, só para fugir do mesmo, espero acabar o pote, que saudade do Aviação. Pedaço de pão italiano, outro pedaço de chocotone, para quê almoçar? Abro a janela da caverna, nenhum som além das unhas recém cortadas da cadela no piso do pátio. Há um vizinho nas últimas, eu sei. Respeito-o pelo som, mesmo que ele nunca tenha me cumprimentado. Na cadeira de rodas ele olha para mim do outro lado da rua, olhar tipicamente ‘avecezado’: nem sei se ele pensa, coitado. O pessoal do feriado prolongado começa a lotar as estradas, dezenas vão morrer, é uma roleta russa sem proporções de medida. Ficar nessa cidade, é melhor nessas épocas de êxodo. Mas a normalidade temporal é de lascar. Essa vontade imensa de escrever alguma coisa que faça sentido, ainda vai me matar, mas longe daqui, por favor. Porém, também é preciso dar vazão às coisas sem sentido, até porque elas são em quantidade insignificante. Não por eu ser um expert (que não sou), mas porque o sentido da coisa para mim é outro. Pareço chegar ao fim de um caminho, e o que eu digo são conteúdos para diários femininos de moça recatada. Prefiro um caderno de receitas a um diário. Sem preconceito, nem crise de identidade, mas a razão desse texto é dizer que as mulheres são muito mais privilegiadas que os homens. Elas andam de vestidos, escrevem diários, cozinham melhor. A bicha delas fica sempre solta. Vou fazer um feijão para almoçar lá pelas quatro. Tem costelinha, paio e um pedaço de lombinho. Carnes nobres para quem aguarda uma temporada de poesias, neste fim de estação de contos sem pretensão, quando a inspiração inclina para o lado pessoal e por isso deixa de sê-lo. Quanta coisa vazia cabe no branco de uma folha. Quantas cores cabem no vazio de uma vida. Toda segunda-feira, não passará de u'a nova segunda-feira. Os mesmos, somos nós... 

Editorial – difícil acreditar que determinada pessoa preencheria a imensidão deste vazio... construí este vazio tão sem muros, porteiras ou limites, que já não há mais espaço para alguém compartilhar sua dimensão comigo... nem mesmo outra solidão... pois as solidões, são infinitos em latitudes diferentes. 

Mundo Refil











Mundo Refil 
Antigamente, Lady Francisco atingia o orgasmo em quarenta segundos com uma chaleira de água quente. Cláudio Cavalcante fazia fendas em melancias. Fantasias condicionadas à penúria das realidades de cada um. Ou será que não é assim? Você fantasia que tipo de impossível? Algo que está além de seu alcance? Aquele homem com quem você já transou ou aquela mulher que transou com você. Se não é alguém do passado... seu desejo volta-se para quem ainda não transou contigo? Você conhece mas ainda não deu liga. Talvez nem conheça bem, mas cairia bem na sua cama. Tem também os desconhecidos dos sites especialistas da WWW. Ou então é quem não existe, o que fica um tanto difícil e complicado psicologicamente. Alguém do seu sexo. Um transgênero, pode ser? As pessoas sempre levam em seu bagageiro do prazer, as mesmas pessoas? O imaginário é limitado? Parece-se com o real, ou seja, pouca gente... ou muita gente... como é o seu arcabouço íntimo das horas particularíssimas de manipulação orgânica? Quem são os habitantes desta seleta casta onírica que povoa seus momentos “I feel myself”? Digo isso partindo do pressuposto que você se satisfaz sozinha, ou complementa sua satisfação mesmo tendo alguém. Um profissional? Não, acho que você não faria esse tipo de contrato. Mas você pode ser uma daquelas pessoas que sempre tem uma amiga, ou um amigo, que possui um amante fixo, à disposição a qualquer hora que você necessite de sexo, é o que você conta. Você fala que é a amiga, disfarçando muito mal que não é você. O amante. Seu amante. Ele vai até sua casa, um beijinho discreto no canto da boca e um vinho para você se soltar (dos seus próprios medos). Ele pede para ir ao banheiro, precisa limpar a bunda para não pagar mico que comeu muita rabanada no almoço. Na volta, sempre há uma cueca nova e você já está com a mesma lingerie reservada para ele, que tira a calça e começa o ritual. Entregam-se sem muito beijo na boca – as prostitutas também não gostam, pois beijo na boca revela intimidade, coisa que elas resguardam, assim como você; elas por direito, você por honra, isto sem comparação de comportamentos, apenas para demonstrar a similaridade no trato da própria personalidade da pessoa humana – até você atingir o clímax. Caso ele não seja egoísta nem precoce, uma masturbação final lhe vale o ingresso. Alguns minutos lado a lado, filosofando sobre a vida não animal e levantam-se para a higiene pós-coito, sua mão está suja de branco e o pênis dele grudento, vocês não usam camisinha, que bom seria se ele suasse menos. Tarde da noite, seu soninho já veio e você manda ele dormir num quarto ao lado, pois sua madrugada também é resguardada: corpos não ocupam lugares de almas. Na manhã, a despedida de quem veio para fazer a prestação de um serviço sem recibo. Foi bom, vocês gozaram outra vez, a libido permanente diminui de circulação, volta para a toca. Na verdade, é a ansiedade que aumenta seu tesão. E o sexo não resolve a ansiedade. Ele é apenas uma fuga dos teus outros medos. Você ocupa o tempo fazendo exercícios corporais com alguém-objeto, achando que isso faz bem para o espírito, coisa tão longe quando você e o resto do mundo transa. Está chovendo lá fora e do lado de dentro de sua janela da sala, alguma gotas de arrependimento que emanam de sua consciência evaporam no vidro, lá embaixo o amante embarca na sobrevivência dele, retornando aos medos dele. Há tantos que se submetem a esse ou outros tipos semelhantes de relacionamento, que o costume social afasta solidões. É um afastamento temporário. Fantasiando sozinha ou usando alguém, não importa, o medo de amar é onipresente...  

Incidental: no restante da manhã, músicas como essa para limpar a noite passada... 

Telefone (Tim Maia) - Bibiana Petek com Tati Portella 




sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Crônica Cotidiana 54




Obra?
Casal cinquentenário. Quase trinta anos de junção. Ela vive dizendo que foram feitos um para o outro. Mas, se é assim, por que ela ainda tem ciúme? A certeza ao empinar os seios fartos e já flácidos e falar aquilo em alto e ruim som, tem outro nome, não é certeza. Deixa pra lá. Não sou sabichão, o leitor que escolha tal nome, senão vão achar que eu sou um guru, pretensioso, eu que não sirvo mais de aconselhador emocional, cansei de fazer isso sem cobrar um tostão. Deixa pra lá dois. Fico pensando que os paradoxos relacionais acompanham os outrora enamorados durante toda a vida, eles nem se transformam em algo melhor ou deixam de existir. Enquanto o café invade minha manhã de pós-feriado, o macio panetone de gotas de chocolate me avisa que as relações não são todas assim, há gente que convive bem com as passas. As coisas passas. Inclusive o ciúme. O ciúme, é o medo da perda. Ele tem mil disfarces, poderia montar uma casa de aluguel de trajes à fantasia, ganhar dinheiro com isso. Ele ocorre somente nas relações onde não há segurança. Como se vocês morassem numa casa, onde o muro desabou. A qualquer hora, segundo os ciumentos, alguém pode invadir o seu território e raptar o seu amado. Embora citadino, isso é bem selvagem, um tanto animalesco, não? Como se o seu amado estivesse disponível para ser raptado; ele nem quer saber de reconstruir o muro. Atenção: ele não quer reconstruir o muro, mas não é por causa disso, é porque ele não quer reconstruir a relação! Não há muro, as divisórias e os obstáculos estão dentro da casa, no relacionamento! Ninguém vê isso. Digo ninguém, me referindo a nenhum dos dois. É uma pena. E são passivos. E são omissos. O que farão sozinhos se acaso se divorciarem? Qual a diferença entre a separação aos dez, aos vinte e depois dos trinta anos de casados? O que aumenta, que impede a desunião? A tolerância? De quê são feitos os laços que atravessam os tempos e ainda mantêm o casal unido? De algodão? De paciência, de pena, de conveniência? De corda? De vergonha, de tradição, de aparências... é... um infinito de possibilidades chega por aqui e eu o represento por três pontos. No fundo, lá no fundo dos lençóis, enquanto Joel toma seu banho noturno, deitada sob as cobertas, ela ainda sonha acordada com seu príncipe encantado, não era ele. Joyce não sabe que não é ninguém. No raso, lá no raso do box, enquanto ela dorme seu sono noturno, sentado no piso ele ainda sonha com seu reinado, não era ela a rainha. Um príncipe a cavalo, levando-a apaixonadamente para os rincões das estórias de amor. Um reinado, onde ele tivesse a liberdade de ir e vir, só isso. Mas a força daqueles laços de insegurança e medo e de tantas outras ausências inclusive vírgulas, ainda os mantém sob o mesmo teto. Uma caverna moderna. Onde os habitantes são animais urbanos. As casas e os apartamentos são quase jaulas. Prevalecem os instintos primitivos, os instintos básicos indicando que as relações são predatórias, quase interbióticas, duas espécies tão diferentes, foram saber disso muito tarde. Mas tudo isso é mascarado pelos tecidos que formam a fantasia da vida a dois. Eles já não brigam em público, e diminuíram o volume das discussões caseiras. Mas só por desinteresse, até a defesa dos pontos de vista recolheu a guarda. Joel tornou-se apático, sério, avesso às piadas e alegrias. Joyce amadureceu, ainda guardando seu sonho juvenil na cabeceira. O sexo, virou um telefonema particular DDD em celular: individual e instantâneo, rápido para o outro fingir que não vê, onanismo semanal. Sabiam, mas não reconheciam que eram o último, um do outro. Hoje são dois, mas não são um par. Obra embargada, a construção daquele casamento parou no tempo. Mas chove lá fora, faz frio nas madrugadas, a selva é cruel e os bichos necessitam ao menos de um abrigo, mesmo que seja o mesmo... 


Pensamento de Papel



Eu não tenho nada para escrever hoje. Queria apenas ouvir uma música boa, ao som de um violão de aço, dedilhado suavemente por uma mulher. Os homens são mais ríspidos no que fazem. Vou procurar algo assim, trazer para o meu mundo real. Nessa noite morta de feriado velado, um belo som para encaminhar a lua em seu trajeto celeste. Quem sabe eu vá junto, e não tenha outra noite de sonhos reminiscentes, com atos e fatos que eu mal vivi, não vivo mais e jamais viverei. Basta a música, hoje eu não quero palavras, letras, nem traduções. Pode ser violão de nylon. Pode ser piano também, eu sou adaptável ao momento. E pode ser uma polaca simples. As sofisticadas, são complicadas e fugidias demais... 


"Secret Love" - Sammy Fain - by Ana Vidovic





quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Crônica Cotidiana 53



 A Cor da Rua 
Todos os dias, toda manhã, Elisa saía com a filha na frente de casa para esperar a menina pegar o ônibus. Mulher quarentona, forte, enquanto a viação não vinha, distribuía atleticamente ração para os cães e gatos de rua que se aproximavam naquela hora para o desjejum. Dentro do portão, já havia uns cinco cachorros, todos viralatas, resgatados por ela, agregados à família. Pontualidade britânica, ela aparecia toda vez de pijamas, sempre coloridos, com sua sandália tropical de nome estrangeiro e borracha amazonense. Um ritual, seguido precisamente conforme seus deveres. Até que um dia, Elisa não apareceu, sendo substituída por Jorge, seu marido. A vizinhança pensou que ela estava viajando. E assim se passou uma semana, pai e filha lá na frente, esperando a condução. Numa manhã da sexta-feira, um vizinho que apanhava o mesmo ônibus, no ponto do outro lado da rua, de revesgueio e com discrição, viu Elisa no jardim do lado de dentro do muro. Ela usava um lenço multicolorido, na cabeça. Na segunda-feira, uma imagem daquelas de fazer parar o tempo no espaço e, através do espanto, provocar-nos na direção do sentido da vida: Jorge, de cabelos, barba e bigode raspados, máquina zero. Diagnosticar o alheio é algo um tanto temerário, já que não é de nossa competência. Mas quando o alheio se aproxima dessa forma, com estes sinais, radicalmente visíveis, é de se repensar o mundo. A atitude de Jorge, em solidarizar-se com a esposa fazendo-lhe companhia estética, é demonstrativo de que ainda há amor sobre a face da terra. Enquanto as autoridades preferem gastar milhões perseguindo política e injustamente líderes públicos visando interesses privados, a indignação toma conta dos espíritos daqueles que ainda têm sensibilidade para com a coisa pública, consciência a ponto de ajudar quem precisa, já que o mote do Estado de Exceção é outro, o particular. Gerson, o rapaz que nos conta essa história da vida comum, levou suas lágrimas até onde pode no caminho para seu trabalho. Chegando lá, correu ao banheiro chorar com a notícia que recebeu naquela manhã, uma informação através de imagens, sem som, apenas pela crueza da realidade que nos envolve. Mas ele não desistiu. Gerson preparou um envelope, foi até o correio, e depositou carta simples, sem remetente, endereçada à residência dos três, pai, mãe e filha. Continha um endereço na América do Norte, de uma clínica que fazia terapia alternativa anticâncer, baseada no simples reforço das células chamadas “anti-oncogen”, através de correta alimentação, mais nada. Ele viu o vídeo e acreditou na história de perseguição pela industria farmacêutica ao médico criador dessa terapia, ainda hoje resistente e vencedor na batalha jurídica que vem enfrentando há décadas, inclusive contra o FBI. Gerson, de imediato ao ver os cabelos raspados do marido dela, sentiu um gatilho de esperança que o fez tomar tal atitude, mesmo que anônima. Ele já fizera isso com um parente uma vez, que havia de tomar oito doses de um medicamento, cada uma custava R$24 mil: durou até a terceira; cometeu o erro de mostrar as terapias que ele lhe indicara, para seu oncologista, seguidor ferrenho dos protocolos da medonha e mundialmente articuladíssima “killer therapy”. Gerson, nunca saberá se Elisa decidiu fazer tal tratamento. Gerson, é como os poetas. Ele escreve, sem apego, sem outra intenção senão a de dizer algo que considera importante, sem aguardar feedback algum. A diferença, é que Gerson tem destinatários. Os poetas, são bumerangues de papel. Ficou uma pergunta ali na calçada, naquela rua. Quanto tempo Jorge permanecerá sem cabelos. Ou ainda, quando será que a rua novamente se colorirá com os pijamas de Elisa...   



terça-feira, 10 de outubro de 2017

Outras Coisas de Casal












Eu 
Coisa quebrada tua 
Num ato teu 
De coragem para os outros 
Covardia para mim 
Era assim que eu era 
Mas veio o verão 
Depois daquela primavera 
O sol me juntou 
E a natureza me disse 
Que sou mais do que uma coisa 
Que eu não estava quebrado 
E que nunca fui teu.. 


A posse humana 
Invadir o outro na relação 
E proteger contra terceiros 
Não são amantes 
São perigosos posseiros 
Que se adonam do abandono, 
Do ser 
Por parte do próprio ser, 
    que não é 
    enquanto não for livre... 


Foi jogar bola, 
Era o discurso 
Mas foi pro bar, 
A realidade.. 
Quando os amigos, 
Tornam-se o dever ser 
A relação já era.. 


Se um dia, 
Tu perderes a vontade de presentear alguém 
É porque este alguém, 
Já não merece mais futuro contigo.. 


Ordens, 
Envelhecem o casal 
Pedidos, 
Adoçam o amor.. 


Tens uma corrente imaginária 
Do teu pescoço às mãos dela 
Quase vejo os elos 
Ainda fortemente ligados, 
Pela fragilidade do teu cadeado, 
    que conhecemos por medo.. 


Viajam para fugir 
Da rotina cotidiana 
Chegam lá, 
    e se encontram 
Com a praxe fugidia.. 


Ele me disse que queria o divórcio 
Pois encontrou caso antigo, 
    mal resolvido 
Não falei nada 
Deixei que o vazio tomasse conta 
Da ideia que o rodeia 
Porque o passado é um vácuo, 
Hermético 
Não há espaço para respirá-lo.. 


A certidão de casamento 
É a única prova em forma de documento 
Das incertezas da união 
Ou, mais simplesmente 
É a única certeza da união.. 


Ela apanhou tanto no amor 
Que hoje, 
    depois daquele amor,
    ou melhor, daquilo 
Defende-se de toda possibilidade 
Mesmo que surgisse um amor verdadeiro... 


Aquele que ignora 
A importância dos filhos na manutenção do casamento 
Ou nunca teve filhos 
Ou é um ignorante por excelência... 


Depois da separação, 
Aquelas frases idiotas que assustam, 
    tamanha a idiotice: 
“Puxa, mas ela é tão bonita...” 
Aos idiotas, 
O sarcasmo.. 


Tu não és mais dela 
Tu é da janela 
Aquela, 
    de sempre 
Que até então, 
    recusaste abrir a cortina... 


Não há casais modernos 
Nem têm casais antigos 
Só existe casal 
Quando ambos são amigos.. 


Nunca deve se pedir ninguém em casamento 
Primeiro, 
Experimentem morar junto, 
A mula e o jumento.. 


Estude bem o parceiro 
Antes de qualquer forma de união 
Para que depois do fim 
Não perceba que ali o ódio se escondia sim.. 


Um dia 
Deixarei de falar de amor 
De casais 
E de tudo o que não me compete.. 
É que sou solteiro 
Posso falar de tudo 
Até de liberdade... 


Músicas românticas 
São aquelas que embalam os casais 
No seu tempo 
Precisam ser lentas, 
Quase jacus, 
E doces 
Porque todo meio ácido 
Precisa de uma vontade básica, 
    e dupla 
De que haja equilíbrio.. 


"Coisas de Casal" - Rita Lee/RC - Rádio Taxi / Thayz B.