segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Crônica Medonha



Medo. Uma pequena palavra, rebelde, pois não se contenta em ser um reles substantivo indicador de um estado emocional diante do perigo, tem ela uma enorme ambição de ser um diagnóstico. Daquelas situações onde a interpretação se perde no espaço, tão extensiva e alucinada, abandonando a própria falta de sustentação que sua superficialidade imediatista possui. Não passa de uma justificativa, aplicada a vários casos, inclusive aos idiopáticos (sem causa aparente), por aqueles preguiçosos de refletir, a turma sempre pronta da solucionática, da gambiarra, sem pestanejar. Qualquer coisa, respondem que é por “medo”. Não me junto a eles, pois quando escrevo (e não falo) 'medo', o faço poeticamente, em sentido lírico, jamais analítico. Repare, caro leitor, o número de pessoas ao seu redor, respondendo que o "medo" é a causa de todas as (in)consequências, dos (des)caminhos, das (a)normalidades dos outros. Para que plano de saúde? Para que consultórios psiquiátricos ou psicológicos? Medo, está aí, em todas as pharmácias, bankinhas e lojaz de departamentos, em forma de amostras grátis, para você levar para onde quiser e jogar em cima da mesa dos jogadores da vida: "Bingo! Você ganhou!". Puxa, que cara inteligente, como ele sabe que aquela guria tem medo? É mesmo, vou na dele. E assim caminha a humanidade, de carona com os rasos, os perfunctórios, os frívolos, todos superficialistas. Não, gente, não é assim. Penso que o medo é uma hesitação diante do desconhecido, ou uma aversão frente ao conhecido. Só isso, não se vai além. Certa feita, uma senhora disse a um rapaz que ele não iria para frente em sua profissão porque ele tinha medo: ela ignorava que ele precisava capital inicial para desenvolver seu trabalho. Noutra feita, alguém disse que uma moça não namorava com um sujeito porque tinha medo: ignorava que ela apenas não via identidade nele. Ou naquela vez em que um senhor dissera que o seu filho não lhe procurava mais porque tinha medo de ouvir algumas verdades: ignorava que ele não tinha amor pelo pai. A criança tem medo dos monstros, até descobrir que eles não existem. O adolescente tem medo do sexo, até descobrir que é fácil. O jovem tem medo de dirigir, até descobrir que torna-se reflexo involuntário. O adulto tem medo do desemprego. O idoso, do abandono. Outros, de avião, barata, palhaço, borboleta, nadar, ladrão, políticos. Todas as formas reais de medo, são condicionais. Precisam de uma referência, uma base, uma razão paralela que permita sua existência. Assim como uma ponte depende de dois pontos de terra em seus extremos. Vamos raciocinar mais e parar de dizer que as interrupções ou as estagnações viventes são causadas pelo medo. Façamos uso dele como devemos fazer com o sal de cozinha: prudentemente. Com restrição, respeitando os verdadeiros medos; e sem banalização, até porque temos que preservar os mistérios, outra dimensão. Um último exemplo: amar deve ser tão bom, por que as pessoas teriam medo de amar? É um contrassenso. Um paradoxo, baita contradição. Fulana disse a Sicrano que ele tinha medo de amá-la: ela ignorou que ele não acredita em amor. Andando um pouco mais, vimos que Beldriana não se relaciona com Sicrano não pelo medo, mas simplesmente porque não tem vontade, e pronto! Tudo bem, a vida urge, o dia corre, não temos tempo para filosofar. Os relacionamentos humanos estão se moldando nos fast-food: deixe sua opinião (engula rápido) e mova-se daqui. Reflexão, pensamento, contextualização, tudo isso é coisa para os vagarosos da vida. Detalhe é que estes, os cágados humanos, quase nunca se acidentam. O medo, é o endereço de uma caverna onde quem acusa, jamais saberia chegar lá... 

Pequeno Mapa do Tempo - Belchior - por Lorena Nunes 



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