Medo. Uma pequena palavra, rebelde, pois não se
contenta em ser um reles substantivo indicador de um estado emocional diante do
perigo, tem ela uma enorme ambição de ser um diagnóstico. Daquelas situações
onde a interpretação se perde no espaço, tão extensiva e alucinada, abandonando
a própria falta de sustentação que sua superficialidade imediatista possui. Não
passa de uma justificativa, aplicada a vários casos, inclusive aos idiopáticos
(sem causa aparente), por aqueles preguiçosos de refletir, a turma sempre
pronta da solucionática, da gambiarra, sem pestanejar. Qualquer coisa,
respondem que é por “medo”. Não me junto a eles, pois quando escrevo (e não
falo) 'medo', o faço poeticamente, em sentido lírico, jamais analítico. Repare,
caro leitor, o número de pessoas ao seu redor, respondendo que o "medo" é a causa
de todas as (in)consequências, dos (des)caminhos, das (a)normalidades dos outros. Para que plano de saúde? Para que
consultórios psiquiátricos ou psicológicos? Medo, está aí, em todas as
pharmácias, bankinhas e lojaz de departamentos, em forma de amostras grátis,
para você levar para onde quiser e jogar em cima da mesa dos jogadores da vida:
"Bingo! Você ganhou!". Puxa, que cara inteligente, como ele sabe que aquela guria tem medo? É mesmo, vou na dele. E assim caminha a humanidade, de carona
com os rasos, os perfunctórios, os frívolos, todos superficialistas. Não,
gente, não é assim. Penso que o medo é uma hesitação diante do desconhecido, ou
uma aversão frente ao conhecido. Só isso, não se vai além. Certa feita, uma
senhora disse a um rapaz que ele não iria para frente em sua profissão porque
ele tinha medo: ela ignorava que ele precisava capital inicial para desenvolver
seu trabalho. Noutra feita, alguém disse que uma moça não namorava com um sujeito porque tinha medo: ignorava que ela apenas não via identidade nele. Ou naquela vez
em que um senhor dissera que o seu filho não lhe procurava mais porque tinha
medo de ouvir algumas verdades: ignorava que ele não tinha amor pelo pai. A
criança tem medo dos monstros, até descobrir que eles não existem. O adolescente
tem medo do sexo, até descobrir que é fácil. O jovem tem medo de dirigir, até
descobrir que torna-se reflexo involuntário. O adulto tem medo do desemprego. O
idoso, do abandono. Outros, de avião, barata, palhaço, borboleta, nadar,
ladrão, políticos. Todas as formas reais de medo, são condicionais. Precisam de
uma referência, uma base, uma razão paralela que permita sua existência. Assim
como uma ponte depende de dois pontos de terra em seus extremos. Vamos
raciocinar mais e parar de dizer que as interrupções ou as estagnações viventes são causadas pelo
medo. Façamos uso dele como devemos fazer com o sal de cozinha: prudentemente.
Com restrição, respeitando os verdadeiros medos; e sem banalização, até porque
temos que preservar os mistérios, outra dimensão. Um último exemplo: amar deve
ser tão bom, por que as pessoas teriam medo de amar? É um contrassenso. Um
paradoxo, baita contradição. Fulana disse a Sicrano que ele tinha medo de
amá-la: ela ignorou que ele não acredita em amor. Andando um pouco mais, vimos
que Beldriana não se relaciona com Sicrano não pelo medo, mas simplesmente
porque não tem vontade, e pronto! Tudo bem, a vida urge, o dia corre, não temos tempo
para filosofar. Os relacionamentos humanos estão se moldando nos fast-food:
deixe sua opinião (engula rápido) e mova-se daqui. Reflexão, pensamento, contextualização, tudo
isso é coisa para os vagarosos da vida. Detalhe é que estes, os cágados
humanos, quase nunca se acidentam. O medo, é o endereço de uma caverna onde
quem acusa, jamais saberia chegar lá...
Pequeno Mapa do Tempo - Belchior - por Lorena Nunes
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