sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Crônica Cotidiana 54




Obra?
Casal cinquentenário. Quase trinta anos de junção. Ela vive dizendo que foram feitos um para o outro. Mas, se é assim, por que ela ainda tem ciúme? A certeza ao empinar os seios fartos e já flácidos e falar aquilo em alto e ruim som, tem outro nome, não é certeza. Deixa pra lá. Não sou sabichão, o leitor que escolha tal nome, senão vão achar que eu sou um guru, pretensioso, eu que não sirvo mais de aconselhador emocional, cansei de fazer isso sem cobrar um tostão. Deixa pra lá dois. Fico pensando que os paradoxos relacionais acompanham os outrora enamorados durante toda a vida, eles nem se transformam em algo melhor ou deixam de existir. Enquanto o café invade minha manhã de pós-feriado, o macio panetone de gotas de chocolate me avisa que as relações não são todas assim, há gente que convive bem com as passas. As coisas passas. Inclusive o ciúme. O ciúme, é o medo da perda. Ele tem mil disfarces, poderia montar uma casa de aluguel de trajes à fantasia, ganhar dinheiro com isso. Ele ocorre somente nas relações onde não há segurança. Como se vocês morassem numa casa, onde o muro desabou. A qualquer hora, segundo os ciumentos, alguém pode invadir o seu território e raptar o seu amado. Embora citadino, isso é bem selvagem, um tanto animalesco, não? Como se o seu amado estivesse disponível para ser raptado; ele nem quer saber de reconstruir o muro. Atenção: ele não quer reconstruir o muro, mas não é por causa disso, é porque ele não quer reconstruir a relação! Não há muro, as divisórias e os obstáculos estão dentro da casa, no relacionamento! Ninguém vê isso. Digo ninguém, me referindo a nenhum dos dois. É uma pena. E são passivos. E são omissos. O que farão sozinhos se acaso se divorciarem? Qual a diferença entre a separação aos dez, aos vinte e depois dos trinta anos de casados? O que aumenta, que impede a desunião? A tolerância? De quê são feitos os laços que atravessam os tempos e ainda mantêm o casal unido? De algodão? De paciência, de pena, de conveniência? De corda? De vergonha, de tradição, de aparências... é... um infinito de possibilidades chega por aqui e eu o represento por três pontos. No fundo, lá no fundo dos lençóis, enquanto Joel toma seu banho noturno, deitada sob as cobertas, ela ainda sonha acordada com seu príncipe encantado, não era ele. Joyce não sabe que não é ninguém. No raso, lá no raso do box, enquanto ela dorme seu sono noturno, sentado no piso ele ainda sonha com seu reinado, não era ela a rainha. Um príncipe a cavalo, levando-a apaixonadamente para os rincões das estórias de amor. Um reinado, onde ele tivesse a liberdade de ir e vir, só isso. Mas a força daqueles laços de insegurança e medo e de tantas outras ausências inclusive vírgulas, ainda os mantém sob o mesmo teto. Uma caverna moderna. Onde os habitantes são animais urbanos. As casas e os apartamentos são quase jaulas. Prevalecem os instintos primitivos, os instintos básicos indicando que as relações são predatórias, quase interbióticas, duas espécies tão diferentes, foram saber disso muito tarde. Mas tudo isso é mascarado pelos tecidos que formam a fantasia da vida a dois. Eles já não brigam em público, e diminuíram o volume das discussões caseiras. Mas só por desinteresse, até a defesa dos pontos de vista recolheu a guarda. Joel tornou-se apático, sério, avesso às piadas e alegrias. Joyce amadureceu, ainda guardando seu sonho juvenil na cabeceira. O sexo, virou um telefonema particular DDD em celular: individual e instantâneo, rápido para o outro fingir que não vê, onanismo semanal. Sabiam, mas não reconheciam que eram o último, um do outro. Hoje são dois, mas não são um par. Obra embargada, a construção daquele casamento parou no tempo. Mas chove lá fora, faz frio nas madrugadas, a selva é cruel e os bichos necessitam ao menos de um abrigo, mesmo que seja o mesmo... 


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