Obra?
Casal cinquentenário. Quase trinta anos de
junção. Ela vive dizendo que foram feitos um para o outro. Mas, se é assim, por
que ela ainda tem ciúme? A certeza ao empinar os seios fartos e já flácidos e
falar aquilo em alto e ruim som, tem outro nome, não é certeza. Deixa pra lá. Não
sou sabichão, o leitor que escolha tal nome, senão vão achar que eu sou um
guru, pretensioso, eu que não sirvo mais de aconselhador emocional, cansei de
fazer isso sem cobrar um tostão. Deixa pra lá dois. Fico pensando que os
paradoxos relacionais acompanham os outrora enamorados durante toda a vida,
eles nem se transformam em algo melhor ou deixam de existir. Enquanto o café
invade minha manhã de pós-feriado, o macio panetone de gotas de chocolate me
avisa que as relações não são todas assim, há gente que convive bem com as
passas. As coisas passas. Inclusive o ciúme. O ciúme, é o medo da perda. Ele
tem mil disfarces, poderia montar uma casa de aluguel de trajes à fantasia,
ganhar dinheiro com isso. Ele ocorre somente nas relações onde não há
segurança. Como se vocês morassem numa casa, onde o muro desabou. A qualquer
hora, segundo os ciumentos, alguém pode invadir o seu território e raptar o seu
amado. Embora citadino, isso é bem selvagem, um tanto animalesco, não? Como se
o seu amado estivesse disponível para ser raptado; ele nem quer saber de
reconstruir o muro. Atenção: ele não quer reconstruir o muro, mas não é por
causa disso, é porque ele não quer reconstruir a relação! Não há muro, as
divisórias e os obstáculos estão dentro da casa, no relacionamento! Ninguém vê
isso. Digo ninguém, me referindo a nenhum dos dois. É uma pena. E são passivos.
E são omissos. O que farão sozinhos se acaso se divorciarem? Qual a diferença
entre a separação aos dez, aos vinte e depois dos trinta anos de casados? O que
aumenta, que impede a desunião? A tolerância? De quê são feitos os laços que
atravessam os tempos e ainda mantêm o casal unido? De algodão? De paciência, de pena,
de conveniência? De corda? De vergonha, de tradição, de aparências... é... um
infinito de possibilidades chega por aqui e eu o represento por três pontos. No
fundo, lá no fundo dos lençóis, enquanto Joel toma seu banho noturno, deitada
sob as cobertas, ela ainda sonha acordada com seu príncipe encantado, não era
ele. Joyce não sabe que não é ninguém. No raso, lá no raso do box, enquanto ela
dorme seu sono noturno, sentado no piso ele ainda sonha com seu reinado, não
era ela a rainha. Um príncipe a cavalo, levando-a apaixonadamente para os
rincões das estórias de amor. Um reinado, onde ele tivesse a liberdade de ir e
vir, só isso. Mas a força daqueles laços de insegurança e medo e de tantas
outras ausências inclusive vírgulas, ainda os mantém sob o mesmo teto. Uma caverna
moderna. Onde os habitantes são animais urbanos. As casas e os apartamentos são
quase jaulas. Prevalecem os instintos primitivos, os instintos básicos indicando
que as relações são predatórias, quase interbióticas, duas espécies tão
diferentes, foram saber disso muito tarde. Mas tudo isso é mascarado pelos
tecidos que formam a fantasia da vida a dois. Eles já não brigam em público, e
diminuíram o volume das discussões caseiras. Mas só por desinteresse, até a
defesa dos pontos de vista recolheu a guarda. Joel tornou-se apático, sério, avesso
às piadas e alegrias. Joyce amadureceu, ainda guardando seu sonho juvenil na
cabeceira. O sexo, virou um telefonema particular DDD em celular: individual e instantâneo,
rápido para o outro fingir que não vê, onanismo semanal. Sabiam, mas não
reconheciam que eram o último, um do outro. Hoje são dois, mas não são um par. Obra embargada, a construção
daquele casamento parou no tempo. Mas chove lá fora, faz frio nas madrugadas, a selva é cruel e
os bichos necessitam ao menos de um abrigo, mesmo que seja o mesmo...
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