Deu no rádio agora de manhãzinha, atropelaram a
muda quando ela foi atravessar a BR na Lapa, corpo tão desfigurado que só
sobraram os documentos, Maria Luísa dos Santos, o motorista assassino fugiu. Fiz
isso com três cães em minha vida, sempre à noite, ou eles morriam ou eu
capotava. Nem parei, os que vinham atrás de mim não parariam para mim, eu me
misturaria aos cães. Qual a diferença entre mim e o motorista de ontem à noite?
Não sei ao certo, acho que ambos somos criminosos contra seres vivos. A muda
gemeu, os cães latiram, mas os veículos seguiram a mais de cem quilômetros por
hora. Maria Luisa não conseguiu ir além dos seus vinte e poucos anos, quem sabe
arriscar-se assim foi um jeito de ela gritar pela primeira vez ao mundo, pela
boca de um jornal sensacionalista. Fiquei pensando, caso ela falasse, o que
diria ao se aproximar da estrada noturna. Mas ela não diria nada, pois era
surda-muda, ela nem ouviu o carro. Fiquei pensando nas pessoas que não são
deficientes auditivos, por quais razões não fazem o uso da voz. Não é por
economia, eu sei. E também naquelas pessoas que têm voz, mas apenas escrevem. Nem
sei por quê não é. Entretanto, a relação do ser humano com o mundo ao seu
redor, é um tanto desrespeitada por algumas pessoas que mergulham naquele redor
alheio, como se o indivíduo fosse uma ilha. Boiam e falam, imergem e escrevem,
sobre o outro em sua pequena porção terrestre em meio à infinitude marinha. Eu
faço isso. Tenho uma voz modéstia parte agradável à coxa do ouvido delas, mas
tenebrosa quando gravada. É por isso que escrevo. Não me gravo cantando. Mas posso
reler-me, escrevendo. Doutro lado, o mundo anda complicado, não se pode mais
ficar quieto, chega gente para incomodar os silentes, acalmados, serenos e
tranquilos. Novas casas estão sendo construídas sem campainha. Lá dentro, não
há mais telefone fixo, a desculpa de que o celular estava carregando é ótima. Mas
o povo insiste contra a hibernação voluntária e temporária. Até os pássaros
estão incomodando-os, invadindo seus lares-repouso incitando-os à ação. Os pássaros
que também não falam, porque piam, é o que coube a eles. Mas nossos encolhidos & quietinhos
interpretam que os pássaros são mensageiros, do bico deixam e levam encomendas, presentes,
recados ou algo semelhante. E recolhem-se cada vez mais em sua casamata, sua
casa na mata. E esperam o mensageiro sair, fecham as janelas, os olhos, a boca,
as coxas e o coração...
Tutorial – já que é assim, louvemos a passarada,
numa das mais belas músicas do cancioneiro brasileiro..
"Cheiro de Mato" - Fátima Guedes - Cantora Luss
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