Todos os dias, toda
manhã, Elisa saía com a filha na frente de casa para esperar a menina pegar o
ônibus. Mulher quarentona, forte, enquanto a viação não vinha, distribuía atleticamente
ração para os cães e gatos de rua que se aproximavam naquela hora para o
desjejum. Dentro do portão, já havia uns cinco cachorros, todos viralatas,
resgatados por ela, agregados à família. Pontualidade britânica, ela aparecia
toda vez de pijamas, sempre coloridos, com sua sandália tropical de nome
estrangeiro e borracha amazonense. Um ritual, seguido precisamente conforme seus deveres. Até
que um dia, Elisa não apareceu, sendo substituída por Jorge, seu marido. A
vizinhança pensou que ela estava viajando. E assim se passou uma semana, pai e
filha lá na frente, esperando a condução. Numa manhã da sexta-feira, um vizinho
que apanhava o mesmo ônibus, no ponto do outro lado da rua, de revesgueio e com
discrição, viu Elisa no jardim do lado de dentro do muro. Ela usava um lenço
multicolorido, na cabeça. Na segunda-feira, uma imagem daquelas de fazer parar
o tempo no espaço e, através do espanto, provocar-nos na direção do sentido da
vida: Jorge, de cabelos, barba e bigode raspados, máquina zero. Diagnosticar o
alheio é algo um tanto temerário, já que não é de nossa competência. Mas quando
o alheio se aproxima dessa forma, com estes sinais, radicalmente visíveis, é de se repensar
o mundo. A atitude de Jorge, em solidarizar-se com a esposa fazendo-lhe
companhia estética, é demonstrativo de que ainda há amor sobre a face da terra. Enquanto
as autoridades preferem gastar milhões perseguindo política e injustamente
líderes públicos visando interesses privados, a indignação toma conta dos espíritos daqueles que ainda têm
sensibilidade para com a coisa pública, consciência a ponto de ajudar quem
precisa, já que o mote do Estado de Exceção é outro, o particular. Gerson, o
rapaz que nos conta essa história da vida comum, levou suas lágrimas até onde
pode no caminho para seu trabalho. Chegando lá, correu ao banheiro chorar com a
notícia que recebeu naquela manhã, uma informação através de imagens, sem som,
apenas pela crueza da realidade que nos envolve. Mas ele não desistiu. Gerson
preparou um envelope, foi até o correio, e depositou carta simples, sem
remetente, endereçada à residência dos três, pai, mãe e filha. Continha um
endereço na América do Norte, de uma clínica que fazia terapia alternativa
anticâncer, baseada no simples reforço das células chamadas “anti-oncogen”,
através de correta alimentação, mais nada. Ele viu o vídeo e acreditou na
história de perseguição pela industria farmacêutica ao médico criador dessa
terapia, ainda hoje resistente e vencedor na batalha jurídica que vem enfrentando
há décadas, inclusive contra o FBI. Gerson, de imediato ao ver os cabelos raspados do
marido dela, sentiu um gatilho de esperança que o fez tomar tal atitude, mesmo que
anônima. Ele já fizera isso com um parente uma vez, que havia de tomar oito
doses de um medicamento, cada uma custava R$24 mil: durou até a terceira; cometeu
o erro de mostrar as terapias que ele lhe indicara, para seu oncologista,
seguidor ferrenho dos protocolos da medonha e mundialmente articuladíssima “killer therapy”.
Gerson, nunca saberá se Elisa decidiu fazer tal tratamento. Gerson, é como os
poetas. Ele escreve, sem apego, sem outra intenção senão a de dizer algo que
considera importante, sem aguardar feedback algum. A diferença, é que Gerson tem destinatários. Os poetas,
são bumerangues de papel. Ficou uma pergunta ali na calçada, naquela rua. Quanto
tempo Jorge permanecerá sem cabelos. Ou ainda, quando será que a rua novamente se
colorirá com os pijamas de Elisa...
Diametralmente oposta a qualquer ordenamento jurídico, DESUNIÃO ESTÁVEL é uma imaginária relação multiafetiva ousada entre a Poesia e a Música. Como esses valores estão em declínio nos dias pós-modernos, decidi promover impulsos de acasalamento sentimental entre ambas, com a substancialidade e a emoção que brota dessas duas formas de expressividade dos sujeitos na sociedade civil, ou seja, nascentes da natureza humana. Aos amantes, as cortesias da Casa.
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