quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Crônica Cotidiana 53



 A Cor da Rua 
Todos os dias, toda manhã, Elisa saía com a filha na frente de casa para esperar a menina pegar o ônibus. Mulher quarentona, forte, enquanto a viação não vinha, distribuía atleticamente ração para os cães e gatos de rua que se aproximavam naquela hora para o desjejum. Dentro do portão, já havia uns cinco cachorros, todos viralatas, resgatados por ela, agregados à família. Pontualidade britânica, ela aparecia toda vez de pijamas, sempre coloridos, com sua sandália tropical de nome estrangeiro e borracha amazonense. Um ritual, seguido precisamente conforme seus deveres. Até que um dia, Elisa não apareceu, sendo substituída por Jorge, seu marido. A vizinhança pensou que ela estava viajando. E assim se passou uma semana, pai e filha lá na frente, esperando a condução. Numa manhã da sexta-feira, um vizinho que apanhava o mesmo ônibus, no ponto do outro lado da rua, de revesgueio e com discrição, viu Elisa no jardim do lado de dentro do muro. Ela usava um lenço multicolorido, na cabeça. Na segunda-feira, uma imagem daquelas de fazer parar o tempo no espaço e, através do espanto, provocar-nos na direção do sentido da vida: Jorge, de cabelos, barba e bigode raspados, máquina zero. Diagnosticar o alheio é algo um tanto temerário, já que não é de nossa competência. Mas quando o alheio se aproxima dessa forma, com estes sinais, radicalmente visíveis, é de se repensar o mundo. A atitude de Jorge, em solidarizar-se com a esposa fazendo-lhe companhia estética, é demonstrativo de que ainda há amor sobre a face da terra. Enquanto as autoridades preferem gastar milhões perseguindo política e injustamente líderes públicos visando interesses privados, a indignação toma conta dos espíritos daqueles que ainda têm sensibilidade para com a coisa pública, consciência a ponto de ajudar quem precisa, já que o mote do Estado de Exceção é outro, o particular. Gerson, o rapaz que nos conta essa história da vida comum, levou suas lágrimas até onde pode no caminho para seu trabalho. Chegando lá, correu ao banheiro chorar com a notícia que recebeu naquela manhã, uma informação através de imagens, sem som, apenas pela crueza da realidade que nos envolve. Mas ele não desistiu. Gerson preparou um envelope, foi até o correio, e depositou carta simples, sem remetente, endereçada à residência dos três, pai, mãe e filha. Continha um endereço na América do Norte, de uma clínica que fazia terapia alternativa anticâncer, baseada no simples reforço das células chamadas “anti-oncogen”, através de correta alimentação, mais nada. Ele viu o vídeo e acreditou na história de perseguição pela industria farmacêutica ao médico criador dessa terapia, ainda hoje resistente e vencedor na batalha jurídica que vem enfrentando há décadas, inclusive contra o FBI. Gerson, de imediato ao ver os cabelos raspados do marido dela, sentiu um gatilho de esperança que o fez tomar tal atitude, mesmo que anônima. Ele já fizera isso com um parente uma vez, que havia de tomar oito doses de um medicamento, cada uma custava R$24 mil: durou até a terceira; cometeu o erro de mostrar as terapias que ele lhe indicara, para seu oncologista, seguidor ferrenho dos protocolos da medonha e mundialmente articuladíssima “killer therapy”. Gerson, nunca saberá se Elisa decidiu fazer tal tratamento. Gerson, é como os poetas. Ele escreve, sem apego, sem outra intenção senão a de dizer algo que considera importante, sem aguardar feedback algum. A diferença, é que Gerson tem destinatários. Os poetas, são bumerangues de papel. Ficou uma pergunta ali na calçada, naquela rua. Quanto tempo Jorge permanecerá sem cabelos. Ou ainda, quando será que a rua novamente se colorirá com os pijamas de Elisa...   



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