sábado, 30 de maio de 2015

I FEEL MYSELF - Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)



Aniversário 
Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos) 

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!... 



sexta-feira, 29 de maio de 2015

Congresso das Poesias Vivas - "As Pessoas" segundo eles:




 As pessoas. 
 Esperam aquilo que nunca vem 
 Procuram pelo que não virá 
 E voltam para o que já se foi.. 
 Marin Chêne 

 As pessoas são, 
 Dez por cento do que querem ser 
 Cinquenta por cento do que não são 
 E noventa por cento do que jamais seriam.. 
 Henry Dernier 

 É difícil viver com as pessoas porque calar é muito difícil. 

 Há pessoas desagradáveis apesar das suas qualidades e outras encantadoras apesar dos  seus defeitos. 

 Só me dirijo às pessoas capazes de me entender, e essas poderão ler-me sem perigo. 

 As ideias das pessoas são pedaços da sua felicidade. 

 O tempo é o único capital das pessoas que têm como fortuna apenas a sua inteligência. 

 As pessoas crescidas têm sempre necessidade de explicações... Nunca compreendem nada sozinhas e é fatigante para as crianças  estarem sempre a dar explicações. 

 Não chegamos a conhecer as pessoas quando elas vêm a nossa casa; devemos ir a casa  delas para ver como são. 

 Viver é a coisa mais rara do mundo. A maioria das pessoas apenas existe. 

 A razão pela qual algumas pessoas acham tão difícil serem felizes é porque estão sempre a julgar o passado melhor do que foi, o  presente pior do que é e o futuro melhor do que será. 

 Há pessoas que choram por saber que as rosas têm espinho. Há outras que sorriem por  saber que os espinhos têm rosas! 


 Quando duas pessoas se encontram há, na verdade, seis pessoas presentes: cada pessoa como se vê a si mesma, cada pessoa como a  outra a vê e cada pessoa como realmente é. 

 Sempre me senti isolado nessas reuniões sociais: o excesso de gente impede de ver as  pessoas... 

 Ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho ímpar. 

 Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem. 

 Há pessoas que nos falam e nem as escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam mas há pessoas que simplesmente  aparecem em nossas vidas e nos marcam para  sempre. 

 As pessoas 
 Opiniões aglutinadas em corpos 
 Vontades guardadas em sistemas 
 Sentimentos amontoados em órgãos 
 Sonhos largados em tecidos 
 E certezas resumidas em células.. 
 Tudo isso, 
 Por entre as almas das outras pessoas. 
 Eduardo Carval 


Crônica Cotidiana 19




Feiras de anarquia semanal. A quinta à noite invade a sexta de manhã, que aparece caída na calçada com uma facada no peito, sem direito à manchete de jornal. Dois indivíduos saem de uma zona central embriagados de descaminho on the rocks. Para alguém sair de um lugar desses às sete do dia, não se pode falar em passos, sequer direção, é apenas sobrevida. Tal moribunda, caquética, terminal, sala dos mortos de hospital. Mas não deu tempo de salvar, padecem na rua crua mesmo: por ironia, da alameda do descobrimento. Em cima, salas do antigo cursinho; embaixo, quartos do eterno retrocesso. Hora de eles voltarem. Voltarem pra onde? Um lugar que resiste, mas já não existe. Se nem existe, voltemos pra zona, antes do contínuo crime matinal. O que havia lá dentro, senão um concurso de agonias desnudadas. Açougue desumano, brechó do sexo, vitrine do desamor. Em nome do entretenimento. – “Paga um drink?”: o cartão de visitas de toda boa puta profissional. É o couvert artístico do inferninho, a gorjeta que antecipa e anuncia o despropósito. Taxa abominável que dá o primeiro nó num imaginário laço de cetim fedorento. A moça exalava cigarro contrabandeado, bonitos dentes em belo corpo já combalido de foder com seus dezessete anos sem praia. Ela não faria show naquela madrugada, foram em derradeiro para o leito de ardor onde, apesar da camisinha, ele contraiu um papiloma vírus humano que só se manifestará daqui a alguns anos. No poluído ambiente socializado, um carrossel de mentiras e videoteipes, girando em torno do eixo sexual. Diversão, era o véu que não encobria a pobreza de suas capacidades relacionais, sejam pessoais ou de trabalho, melhor: incapacidades sociais, mais por não adaptação do que por demérito. A mulher ainda continua sendo explorada, modus animalesco e rudimentar de levar a sociedade de volta ao aconchego do buraco, buraco em lato sensu. Da valeta, onde o carro de Adriano cairia após colidir com um motoqueiro em seu bairro. O amigo dele nem acordou com o pequeno acidente. A noitada, tinha sido muito mais catastrófica. Sem espaço para arrependimento, afinal “valeu”. Valera por qualquer maneira, pela técnica de abordagem, a interação, a conquista e pelo abate. Como se fosse um ‘caminho do crime” a ser concluído com êxito, mas compreendido feito vitória. Naquela próxima noite, beijaria na boca duas gurias desinformadas na baladinha sertaneja. Atrás de seu segundo molar inferior esquerdo, numa depressão gengival por ação de um siso mal irrompido, dormia silente uma colônia de bactérias migrantes, originárias de uma lesão na boca da puta, a mesma dos dentes tão bonitinhos. É a disseminação muda dos horrores corporais. Uma peste líquida se espalhando entre as pessoas que liquefazem seu sentido da vida. E a puta, aonde ela ficou na história? Em nenhum lugar, pois ela não fazia parte da história, nem da sua própria vida, a qual considerava única. Minha filha ficou na escola, eu fui trabalhar e Adriano continuar a morrer. Já havia matado mais uma manhã mesmo. Tempo que ele não compreendia como chance. Porque a vida, nada mais é do que uma chance. Uma nova chance a cada novo amanhecer. Não havia sangue naquela calçada onde parei no sinaleiro e avistei o encerramento cruel da quinta-feira, abortando sua vizinha de calendário. O que ficou no ar, foi o cheiro da morte...morte de parte do organismo social. Angélica, dois anos mais tarde, foi velada com seu nome verdadeiro. Em plena história da sua vida, por ela não ter feito parte, ninguém quis saber o motivo da morte... 


quinta-feira, 28 de maio de 2015

PHILOSofando / "ANTÍteses"



PARA  TI 
Antítese. Pensamentos de sentido contrário, diz qualquer dicionário. Teses opostas, entenderíamos nós. Teve uma história na vidraça do tempo(ral) recente, em que o próprio conceito dessa palavra coube e não coube nela. Há de se filosofar, quando se pretende explicar as coisas profundas da vida. Mas apenas quando se pretende isso mesmo. Recorro à língua pátria, e extraio dela que ‘pensamento’ é um efeito do pensar, uma faculdade de conceber, combinar, comparar ideias. Algo que, por óbvio, transita na mente dos seres vivos não vegetais. Uma atitude fisiológica, derivada do exercício da percepção do mundo através dos órgãos dos sentidos, seguida de raciocínio e consequente síntese analítica (por vezes passional) sobre tudo o que se passa e não passa na vida de alguém. Mas ele, nosso herói 'pensamento', pode fugir de sua casinha neurologicamente revestida, por meios de expressão, seja verbal, gestual ou principalmente escrita do sujeito pensante. Então, se uma coisa assim sai pro mundo e deita no papel, por exemplo, vai logo sugerindo sem modéstia uma interpretação por parte do leitor, seja destinatário ou não daquele conteúdo revelado ou ainda segredoso. Realmente, às vezes, sobre o papel, é possível haver pensamentos conflitantes, principalmente se expostos em folhas diferentes. Mas seria um erro por parte de nossa 'limitada' espécie, restar a comparar escritos assim. O fazemos - gritando ou em silêncio - do mesmo modo que saímos na chuva com sapatos de camurça, por exemplo, uma tradição natural. Hoje, isso diz aquilo; ontem, falava outra coisa. Simples, normal, tudo cabe no papel, “na lata do poeta” como cantava a música daquele doce bárbaro. Conclui-se portanto, que são normais o conflito, o paradoxo, a desconexão e a confusão se forem comparadas ideias manifestadas em instantes diferentes, não importando qual intervalo. Só porque a ideia, é livre. Quando poética, inimaginável seu alcance. Por tudo isso, é compreensível a presença da antítese. Mas não se pode esquecer, de que o significado da palavra antítese, refere-se, debruça-se, e deita-se ao, sobre e no pensamento, exclusivamente, em caráter semântico, puro. Além disso, há outra mente/pessoa à frente dos ditos “mistérios” da escrita, que está a interpretar, por sua vez pensar, praticando o mesmo exercício ou atividade cerebral individualizada para assimilar significantes, declarados ou não. Em suma, uma só mente pode pensar diferentemente sobre um mesmo tópico, e assim se expressar também. O receptor da mensagem, a seu modo, faz a mesma coisa, ou seja, dependendo da sua percepção de momento, pode interpretar distintamente até as mesmas palavras, pois está fazendo uso de seu pensamento particular no meio daquele tempo(ral). Confuso, isso tudo? Coisas do pensar, de quem se limita a isso. Natureza dúbia, múltipla, até infinita desse tal pensamento. Valei-nos então, do discernimento. Porque sentimento, neguinha: é um só... 

'Morais' dessa História: 
/Não há mistérios no reino da Terra, são os humanos que por livre arbítrio não querem caminhar na direção de determinadas respostas.../ 
/Nem há teses para sentimentos. Eles não vieram ao mundo para serem “pensados”../ 
/O sentimento, é um pensamento que nasceu./ 


 - aqui jazz uma música incidental - 
 "how deep is your love" - the bee gees / by tommy emmanuel & john knowles 



quarta-feira, 27 de maio de 2015

Contos sob Cumulus




MATIZ ou VIRGINAL
Chore, chuva. Chore tudo o que eu me seguro em resistência, em aprendizado e em vão. Chore bem aqui, ao redor e sobre minhas comportas de orgulho solitário em lacunas. Enegreça toda essa tarde de vazios, pintando de cinza escuro um azul que parece não ser para mim. Passe sua cor neutra sobre a extensão de todo o alaranjado, já não sinto mais temperaturas de ninguém. Dê um tom certo à vida errante, um quase merecimento deste eterno e prolixo black-tie. O qual, no máximo, aplicava guache sobre silhuetas imperfeitas, tênues e ‘demodês’. Seu papel, não era especial nem reciclável. Suas canetas e lápis e pincéis e gizes de cera, todos quebradiços pela inação do tempo, pela inércia dos outros, nunca próximos em espaço. Que aquarela o quê. Um símbolo da deseducação artística que foi sua não prosperidade relacional. Tanto então, que ele sucumbiu de ceroulas e sem cuecas, ao preto-e-branco do seu destino. Mas fica tudo confuso, se é ele, ou seria eu como protagonista: não importa, o caderno foi rasurado mesmo. Aos seus pés, a cor branca do nada, acima a preta cor do infinito. Toda emoção o levava ao infinito, lugar longínquo demais para se viver uma emoção. Era espécie de compensação para aliviar a razão que caía sobre a distância entre realidade e seus desejos. Até seu esperma era branco em demasia. Uma espécie de leite descondensado a perder-se entre tecidos-trapos nojentos e ralos límpidos do chuveiro só. Não havia mãos que o tocassem, ventres que o recebessem, coxas que o agasalhassem, seios que o envolvessem, bocas que o deglutissem, ânus que o escondessem. Ejacular, também em vão. Alívio imediato feito música gauchesca duvidosamente harmoniosa. Predominância de vocábulos negativos e aumentativos numa história cujo cromossomo Y deteriora tanto quanto seu produtor. Jeito de selva, mas cheiro de cimento. Som de oceano, mas gosto de terra. Ares rarefeitos, superfícies mais ainda. Insustentabilidade geral e irrestrita, um paradoxo sofrimento que só lhe fazia crescer longe daquilo tudo. Uma certeza de não ser, de não conviver, de não amar, finalmente foi substituída por algo quase indescritível: o sentido de sua poesia. A descoberta. A revelação. Depois de todas as mortes, o nascimento de uma resposta. O analógico Graal de sua descrença, pois só concebia a fé, numa xícara de café. E não foi a falta de religião que causou tudo isso. Nem a falta de amor, de esperança ou qualquer coisa assim. Foi apenas a direção que, mesmo sem saber, deu aos seus passos: encontrar este mesmo mundo, mas bem longe daqui. Lá, onde a chuva seja acompanhada por um arco-íris entre as nuvens brancas. E que preto, seja apenas o pote que se encontra no fim. Quem sabe, lá dentro, uma mensagem furta-cor, e ele possa enfim provar o sabor da existência... 


Flagrantes da I-n-t-e-r-s-u-b-j-e-t-i-v-i-d-a-d-e + compl.


 O CAPITÃO CLANDESTINO 


Então a guarda costeira interceptou aquele barco: 

- Ei, Marinheiro! Aonde pensa que vai? 
- A nenhum lugar determinado, estou apenas a navegar. 
- Mas como é que alguém se lança no mar sem destino? 
- Qual o problema? Tem tanta gente que vive em terra firme sem saber aonde ir... 
- É, mas aqui é muito perigoso. 
- Depende, do que o senhor considera perigo. 
- Você está muito longe da costa. Daqui a pouco acaba o território marinho nacional. 
- Sim, eu sei. Mas as águas internacionais não devem ser muito diferentes das nossas. 
- Mas é que lá não há proteção. 
- Para que as pessoas precisam de proteção? 
- Acidentes, panes, somalis... 
- Não costumo viver pensando no pior pela frente. Já basta tudo aquilo que eu aprendi. 
- Você está se arriscando, eu avisei. 
- Obrigado pela atenção. Vou me cuidar, não se preocupe. 
- Tem mais alguém com você na embarcação? 
- Não. Pode verificar. 
O policial entrou, revistou tudo. Interpelou: 
- Nossa! Tudo bem algumas fotografias e o violão, mas para que aquele monte de livros e de CDs lá dentro? 
- É o que eu trago de valor, sempre comigo aonde for. 
- Mas se o barco afundar, você perderá tudo! 
- Sou eu o Capitão da minha vida... 


 "Oceano" /  Djavan - por Danilo Oliveira 



segunda-feira, 25 de maio de 2015

Contos do Cais de Conta




MAR À VILA 
No mercado marítimo do amor legítimo, fui paralelo contrabando, ora escambo e vulgar. Para mim contravenção, o que para elas foi sempre irrelevante. Eu sabia tudo, nada sentiam. Que nem em crime daria, este vulnerável peito de emoções ilícitas, abissais. Insuficiente, restei na base da plataforma sentimental, às margens da sociedade afetiva, do lado de fora de todos os corações. Alguma coisa na existência me impediu tal prazer, não fiz jus a tanta felicidade, como se pudesse haver pouca, ou intermediária também. Vê como tamanha, aquele que nunca viu. Quaisquer gotas, são chuva. Qualquer réstia, é sol. Toda terra é chão e todo vento é direção. Um brilho é prata, outra cor é ouro, quando não se entende do assunto. Dos pássaros fiz liberdade. Meus animais domésticos reciprocidade foram, e eu sem nenhuma companhia racional. Os sons da natureza, eu louvei. Suas cores, eu pintei sem desenhar caminhos. Só fiz rabiscar palavras em papel tão branco e vazio quanto minha vida de paixões migrantes daqui. Tanta força (na ausência) de sentidos, que ainda sou menino de realizações, apesar de senil em experiências. Um paradoxo em mim, extremos que jamais se uniriam. Talvez o amor fosse uma ponte. Construí metades, pelo menos sobre as águas do destino, que logo me levavam embora dali, sem me machucar, nem correnteza. Não havia espaço para lamentação, o tempo já chamava de volta para o mundo real do não ser. Cais de ninguém. Não vi gnomos em minha floresta. Nem alienígenas em meu céu. Mas sempre tive a consciência de que, no meu mar, fui imperial navegante. Passeei pelas superfícies das relações, linha d’água divisória sobre os aconchegos. Mergulhei, eu sei: em vão, no oco, para o vácuo, pelo nada. Oh, dor que me alimenta, tenha paciência com este marujo, continue-se eternamente amarga em seus ácidos aminos. Pois se você cessar, eu afundaria no mais raso texto, sem ondas doces que pudessem me atracar... 


domingo, 24 de maio de 2015

Contos sob a Baixa Atmosfera



CHAOSFERA 

O caos em mim. Dimensão celular da caótica sociedade orgânica. Não comecei, mas penso que o caos partiu de alguém. Ou de várias pessoas, por sua porção individual, desligada do mundo ou não adaptada a ele. De tanto ver gente ao meu redor emanando caos, fui atingido e passei a gerar também, fator contagiante e patogênico. Mas meu caos é diferente, vou tentar desvendá-lo, já que o descobri por aqui. Nesse por dentro, que também é ao meu redor. E talvez se espalhe em direção ao meu futuro, posto que presente continua sendo tudo aquilo que fazemos hoje, germinal ou fatalmente repercutindo depois. Já depois de amanhã, pode até ser. Instalou-se em alguns departamentos dentro de mim. Fez confusão geral, principalmente em âmbito relacional. Estou me distanciando do mundo humano, em muitos sentidos. Não só o físico, mas o afetivo. Pareço eliminar, feito compulsão, toda a paciência e a credibilidade nos elementos da turba próxima a mim. Cicatrizes pela alma e escaras pelo espírito, em corpo límpido. Sem rancor, mágoa ou arrependimento, vou me desfazendo dos laços que se desataram por vontade alheia, indiferença e generalidades idem. Saio como quem vai ao cinema, totalmente despreocupado com os fins das relações. É um misto de coragem e desapego, retidão e disparada. Uma sensação de leveza, sustenta-me por entre as conscientizações da realidade. Não ligo se é um paradigma e a comunicação social está sendo transposta, eu estou aqui mesmo, partindo a cada instante, música ou poesia. E a falta de sentimentos negativos que me amarrassem ao chão das coisas, é experiência que me preenche de maturidade, equilíbrio, dando conforto ao caminhar. Por ver e rever o que seria irremediável, o que é desconexo e o que foi encerrado, meu comportamento de preventivo passou a curador. É, eu me saneei. Muito mais do que basicamente, fui além das perspectivas. Enchi a casa do meu peito de pontos finais. Sim, em função do caos urbano. Mas em seu conceito primordial, o caos não se limita às finitudes, ele parece anunciar algo de transformador à frente, não operando somente à minha volta. Há criação de um espaço-tempo que deixa no ar a sensação de novidades, possibilidades, outras palavras. Soube disso somente agora. Desatenção, pois eu poderia ter olhado atentamente para o lugar que sempre existiu ao meu lado em minha cama: frio e onipresente. Hoje, sei que era apenas eu quem esteve por ali, em incursões notívagas de sonhar maravilhas ou aterrorizar pesadelos. Agora, sei que o meus caos é só meu, ninguém o trouxe. Os outros, são frutos da minha respiração equivocada. Não precisarei dar tons absolutos, apenas o reconhecimento de que seguirei só. É a minha maneira de resolver o meu caos pessoal: depurando-me, de gentes e de mim mesmo. Organizarei um sistema para que eu possa dar sentido à minha existência: desafiando aquela coisa chamada vida. Porque se eu deixar que ela me leve, limitar-me-ei às benesses do caos geral: conservadorismo, omissão, calmaria, solidão e toda aquela tradicional conformidade. Eu seria apenas mais um, fora de mim, longe de todos, no seio do caos, na lâmina da navalha ou na iminência da cruel armadilha de um grande amor...   


 Um cheiro de Morte vem 
 do Norte 
 cidade descoordenada 
 Pessoas se Afastam feito 
 ventania 
 Vizinhos são defesos dos seus 
 Próximos 
 há um movimento centrífugo 
 egos matam Essências, 
 que fogem em disparada para 
 lugar nenhum 
 permaneço, 
 Só 
 nem mais a Solidão restou 
 ao meu lado, o vento 
 e todas as folhas voltadas 
 para a direção 
 antônima do poente... 

 - poesia incidental: 
 [porque na ‘solidão’, 
  o ‘idão’ tapa o ‘sol’ 
  se apenas ‘só’, 
  há um ‘lidão’ pela frente...] 



quinta-feira, 21 de maio de 2015

Sessão Pensamento






Tribuna Inestoica




 Alforriem Mauríci

Quando morre uma Amizade 
Não, não é caso de tristeza. Pois quando há falta de atenção para o que já vem adoecendo há algum tempo, não se pode colocar nas pastas da tristeza algo que tem outro cabimento: desatenção, simplesmente isso. As pessoas são livres para escolher os seus caminhos. Como também são livres para escolher os seus companheiros de jornada. Então não podemos complicar e ficar lamentando as opções alheias fugidias, mesmo se um dia foram tão próximas em caminhada, em similitude de valores, sintonia. Tudo muda, se transforma, se modifica ao longo do tempo, três sinônimos sequenciais, para demonstrar que a mudança não para, é contínua. Nos dias de hoje, é evidente a banalização das relações afetivas, dentre elas a amizade. Do real para o virtual e deste para o nada, nada além de páginas viradas da história. Às vezes, nem passa pelo virtual, cai direto no vazio. A amizade, é um valor repleto de princípios, sendo um dos principais, o fator presencial: amigos de verdade, se frequentam, se visitam, e saem pela vida juntos. Não importa distância, tempo ou qualquer outra desculpa. Cuidado com aqueles que jogam todas suas justificativas no trabalho, pela falta de tempo: argumentação ultrapassada, oca, longe da verdade, coisa de covardia em reconhecer suas próprias verdades, pobreza argumentativa, fundamentação nula. Melhor assumir a decadência da relação e o 'descurtir' do que cozinhar em banho Maria as cascas do que se foi. As pessoas se afastam, em silêncio, por terem medo de conversar sobre as razões da falta de emoções, do desinteresse pela companhia, dos fins das relações. “A verdade dói, ai que dor doída, que a gente sente quase toda a vida”, dizia o sambinha do Monga. Monga também tinha receio das palavras, que elas se justassem e encontrassem a cor da razão, o cheiro do motivo, o som da ausência, o gosto do insípido e o tato do mais nada. Não vejo por que medo disso. Há tanta gente no mundo que pode se tornar nossos amigos, pra que ficar lamuriando quem não quis permanecer? Livre, vá-se embora, sem problemas, siga o seu caminho, tudo de bom, seja feliz. Não se importe comigo, afinal já optou pelo afastamento, é só continuar o caminho que você decidiu. Sensação estranha que me invade quando isso ocorre: não é tristeza, é um misto de indignação e revolta - passageiro, obviamente - por não podermos fazer nada, porque não é mesmo para se fazer qualquer coisa. Já é tarde, deu pra bolinha: vazemos, irmãos! Mudamos de casa, de emprego, de carro; de praça, de pastelaria, de bebida; de parceiros sexuais, de namorada, de cônjuge; se os parentes se vão, porque os amigos não poderiam ir-se também? Nossos cães morrem e arrumamos outros. Senão, podemos perfeitamente ficar sem nada disso também, curtindo ausências e solidões que só nos fazem depurar e lapidar a alma, evolução espiritual, modificada mas tá valendo. Não é que necessitemos substituí-los, mas é que ninguém é absoluto nesta vida: se ocupavam lugares e resolveram por livre arbítrio desocupar, ou levar seus assentos para outras cercanias, que assim seja, pois cada espaço/coração é grande o suficiente, cabem tantas novas poltronas, reclináveis até quando necessário. O indivíduo é único, mas a relação entre ele e outro indivíduo é relativa! Hoje eu estava andando numa pracinha e vi tantas pessoas...há tanta gente nesse mundo que pode ser amigo da gente, não tem sentido nós insistirmos ou nos lamentarmos por aqueles que não querem mais estar ao nosso lado. Por isso que há bastante gente no mundo. Por isso vivemos em sociedade. Por isso há caminhos, diversos. Por isso as coisas são plurais, múltiplas, inúmeras, convergentes, divergentes ou paralelas de direções. Por isso existe o lado da frente, que serve para deixarmos de olhar para trás, leia-se futuro e passado. Temos coisas muito mais sérias para nos preocuparmos, do que meros e voluntários rompimentos relacionais, tudo passa e só passa se permitirmos passar: lamentar ou impedir, é irracional, pois significaria tentar controlar aquilo que não depende de nós, seria forçar, algo extrema e desnecessariamente antinatural. Quando eu tinha 10 anos, faleceu uma tia que deixou quatro primos: um de 6, gêmeas de 4 e outro de 2 anos. Um dia as crianças foram lá em casa e cantaram esta música: “eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar”. Odeio esse compositor, mas cada vez que eu lembro disso, é como se fosse hoje: elas queriam ter muitos amigos, sem mesmo saber que era para compensar a ausência da mãe. Vontade de chorar por elas eu tenho, mas jamais por meus amigos que se mandaram por vontade própria. Que vão todos os dissidentes sorrir em outro norte, eu fico sorrindo por aqui no meu sul mesmo. Nem importa seus motivos, deixem as pessoas livres para se relacionarem, com quem bem entenderem. Esses, são os que na hora da morte aparecem tardiamente para chorar arrependimento ou fingir consideração. Esses, são os prescindíveis... 

 Quando morre uma amizade 
 Nasce uma flor 
 Aonde, não sabemos 
 É onde jamais veremos 
 Pois não se sabe onde fica, 
 O jardim da nossa história... 
     Então, viva as flores! 
     E novas sementes para outros amigos... 
     Que sejam eternos enquanto reguem 
     Em reciprocidade os laços de cultivar 
     O que se foi, é jardim 
     O que ficou, 
     É só história... 



quarta-feira, 20 de maio de 2015

Matri & Monium


 "Há Palavras Que Nos Beijam" 
 Mariza 




 Poema de Alexandre O'Neill 

 Há palavras que nos beijam  
 Como se tivessem boca.  
 Palavras de amor, de esperança,  
 De imenso amor, de esperança louca. 

 Palavras nuas que beijas  
 Quando a noite perde o rosto;  
 Palavras que se recusam  
 Aos muros do teu desgosto. 

 De repente coloridas  
 Entre palavras sem cor,  
 Esperadas inesperadas  
 Como a poesia ou o amor. 

 (O nome de quem se ama  
 Letra a letra revelado  
 No mármore distraído  
 No papel abandonado) 

 Palavras que nos transportam  
 Aonde a noite é mais forte,  
 Ao silêncio dos amantes  
 Abraçados contra a morte. 


Crônica Cotidiana 18



A arquitetura impera, reina macedônica. Suicida todas as outras ciências, inexatas perto dela. Belo, sim o êxtase sobre o belo palco de mármore. Reconhecimento tão obrigatório quanto quitar o estacionamento. Quase uma era do gelo aos olhos. Cores circulam despojadas pelos corredores solenes. Vazios, tais corredores. Cosmopolita, o lugar parece um cateter no corpo, abismo em plataforma, vácuo na atmosfera, buraco-negro no cosmo. Entrar ali, é sair da cidade. Esqueça-se o conteúdo das lojas, deixe-se isso para daqui a pouco e agora é pensar no espaço. Indescritível, exceção aos profissionais do ramo das antigas pranchetas, os responsáveis e os não. O sujeito não oculto desta crônica simbolicamente curvou-se, é bonito mesmo. Detalhes transbordavam à percepção: distâncias "inteligentes" projetadas, para que os frequentadores não se encostem em outros transeuntes, melhor vice-versa. Praça de alimentação deslocada, evitando agentes unicamente restauradores de apetites, os sem poder aquisitivo, figurantes das passarelas. Luz, muita. Local para quem pode, muito. Tanto pode que nem precisa vender, adquirir é outro negócio. Basta o estabelecimento associado a alguma marca mundial. Massageia o ego, endireita o bolso, coisas de status social. De vértice da pirâmide, vórtice relacional. João Carlos foi comprar ingresso para show internacional em setembro. Deu uma voltinha, encontrou duas moças comendo alguma coisa perigosa na rede fast-food da minhoca temperada, o sanduíche mais barato do mundo no shopping mais oneroso da região: um tanto esquisito para não dizer bizarro. Deveriam ser atendentes, ou não, poderiam ser outras transeuntes ser poder econômico, tampouco para refeições requintadamente elaboradas a la carte. João Carlos conhece o dono, sabe do seu cacife. Salomão não o conhece, ignora o seu ‘despoder’. Um parabéns foi colocado no meio do silêncio ensurdecedor do ambiente. Mas foi preciso redirecionar o pensamento. Onde está Wally? O que fizeram dos consumidores dali? É somente exposição, claro que não. Ele pensa se os clientes têm hora certa para pousar seus cartões magnatas naquela Xanadu. Não adianta. João Carlos não está acostumado a divagar sobre os eventuais problemas da elite financeira de sua Aldebarã. Todos têm problemas, mas é estranho pensar que há gente cujo problema não é o dinheiro. Que este não traz solução. Uma socialite esticada feito massa de pastel desfilava suas nádegas siliconadas, uma quase Gretchen do Batel. No estacionamento, ela saiu num Porsche. Ele, o sujeito do ingresso, voltou de Logan manual para a vida real. Ela beirava os sessenta, olhou para ele de quarenta como se ela tivesse trinta, querendo coisas de dezessete. O bólido automóvel excêntrico deu a ela mais crédito em seu tênue raciocínio, algo que não o atingiu. Aquela big bunda pig prótese, certamente não peidava Chanel N 5. Ele teve náuseas. Ele só conheceu o pedaço, jamais voltará ali. Não há identidade além da simpatia pelo visual moderno, o qual já foi louvado em pensamento. Talvez a Livraria da Vila, quem sabe, não obstante o paradoxo espacial do nome. Mas o mundo de verdade, é lá fora mesmo. Como é aguda a ponta da casta social, ínfima perto da base popular. Como é distante o formato desta casta, contíguo ao espaço do povo. Lá no topo, um mezanino gourmet representava o controle social exercido por um meio de comunicação de massa, no topo eu disse. Que pena que o sectarismo também impera como a Arquitetura privilegiada, clímax dos desenhos: é muita coisa para pouca gente, que nem se vê pela frente. Em analogia barata, o conteúdo do museu é diferente. Menos mal que desta vez, não trouxeram um nome norte-americano, um sobrenome alemão ou um apelido popular. Chamaram de Pátio, a obsolescência do comprar. E acrescentaram um time de futebol de Guarapuava, uma escola de samba da Antonina, um bairro aqui mesmo, ficou legal eu sei. Mas Wally não veio. Ingresso na mão, dúvida na cabeça: o show passará, a resposta é tão vazia quanto os corredores dali. E foi-se em boa hora a malévola bunda dentro do Porsche com uma sacola très chic para contar alguma coisa a alguém que também não precise senti-la... 


terça-feira, 19 de maio de 2015

Perambulando


 'De tanto refletir 
 Descobri que sou, 
 Um filósofo para minha consciência 
 Draconiano com meu corpo 
 Um sofista pelas minhas mãos 
 Um tirano sobre meus pés 
 E um déspota do meu amor.." 


 Ramble On / Led Zeppelin 
 cover by Tony Wright