quarta-feira, 13 de maio de 2015

Contos de Solitude



Uma Casa no Tempo 
Há muito frio neste outono. Vento silencioso e contuso, dói sem ferir um organismo apartado das cartilhas sociais ou das estações climáticas: porque o frio vem de dentro. As oscilações de Celsius não lhe atingem. Do coração, fez-se uma casa abandonada, lençóis brancos sobre raros móveis simbolizando as pessoas que dali já partiram. Onde predomina o vazio de sensações, um vácuo de luzes, de sons e gentes. Imóvel, na acepção mais pura da palavra. Deserto citadino, urbano cerrado de não habitação. Lugar de gelo seco, iglu equatorial deslocado em plena floresta tropical. Lá fora, o mundo todo; aqui dentro, o nada nenhum. Pontos-e-vírgulas pelo chão, travessões pendurados na parede, dois pontos na janela, aspas no teto e exclamações sobre a última mesa. Parênteses na cozinha, vírgulas pela varanda e um ponto-final sob o tapetinho do hall de saída: foi o que restou naquele ambiente descolorido pela vida, ao menos tentada. Sim, um dia ali havia alguém. Alguém que escrevia, era ele mesmo. Mas onde estariam as palavras, se realmente era alguém que escrevia? Restaram apenas os sinais, as palavras foram embora nas frases que sempre o conduziam para longe. Das sensações, pouca coisa se deixa. É bem assim a narrativa de uma visita tardia a um local onde poderia residir um sentimento. É assim mesmo a descrição de um retorno demorado a um local onde não moraria mais ninguém. Nem há trancas, portas e janelas ficaram como estavam. Quem passa perto, sente o arrepio da indiferença. Por isso chamamos de frio tudo aquilo que não é capaz de aquecer, mover ou fazer desejar. Por isso é preciso ter consciência e coragem para se revisitar a solidão. Certificar-se de que os lençóis estão lá, de que não há calor, movimento ou vontades turbadas. Enfim, que não há mais espaço para coisas da espécie afetiva. Mas o fundamental não é apenas reconhecer tal realidade, há de se ter ciência de que, mesmo assim, dá para ser feliz. Pois há muita beleza na natureza dos polos, dos extremos, dos rincões, dos interiores; da verdade que emana de um ser solitário, sabedor da fiel ausência de companhia em sua existência. E pode haver muita beleza naquilo que um homem nessa condição escreve, por ter feito de seu coração um patrimônio histórico tombado. Aquela casa, por exemplo, é muito bonita. O mundo ao seu redor, é lindo a perceber. Mas lá na frente deste imóvel coração, não há placa alguma: o amor é mesmo algo inalienável... 

- Onde estariam as palavras então? – perguntaria outro racional. 
- Certamente, não mais perdidas dentro de casa, sentadas sobre um móvel qualquer. 
- Perderam-se no mundo? 
- Digo que encontraram-se. 
- Mas onde? 
- Onde, eu não sei...só sei que elas partiram como as notas musicais abandonam os seus instrumentos de origem: foram-se com o vento... 


 Ulli Boegershausen  -  "Secret Story" 


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