domingo, 29 de outubro de 2017

Clube nº Zero


Então ela veio. Isto é, ela foi lá. Se isso partiu do passado ou do presente, ninguém sabe, chegou atemporal. Ele a recebeu, com humildade e educação, mais um tantinho assim de humor. Depois daquele encontro matinal na padaria, ela insistira em revê-lo, desistiu, ele hesitou até onde pôde. Pois lhe devia uma satisfação, em função do passado, haveria um dia de revelar seu presente a ela. Até porque os reencontros de hoje em dia, qualquer seja o nível relacional, são cheios de falsidades e mentiras de um para o outro, sempre dizem que vão lhe procurar; e nada, e nunca. Passou o tempo e quase uma centena de fornadas, ele mandou mensagem, talvez fosse a hora. Ela foi lá. Ele já sabia de tudo. Mas algumas coisas o impressionaram. Ele sabia que ela estava na procura de uma companhia, para um relacionamento sério, mas não íntimo e discreto como dizia outra música. Ao passo que ela foi contando as razões de seu drama, ele ia conferindo de perto uma dessas pessoas que tem amor para dar. Coisa estranha a ele. Muito. Pessoas que têm o coração volume, forte e delicado, aberto, convidando alguém para entrar porque há um lugar em sua "casa" para tanto. É uma espécie de pré-disposição. Ele até falou a ela que via isso com preocupação, pois ela poderia, desse jeito, se decepcionar com muita gente, tão diversos são os interesses atuais. Sites de relacionamento? Nem pensar, mas ela frequentava. Ele viu que não era medo da parte dela, era sim uma necessidade de ter alguém ao lado, para dividir o cotidiano, o cinema, a cama e as noites vazias da capital. Coragem, ela tinha de sobra. E mais: ela merece alguém à sua altura, faz por onde a danada. Impressionante o quanto é carinhosa. Seus braços e mãos e pernas, cobertos por uma pele sedosa, uma boca refrescante, saliva Ouro Fino, toques adultos partindo do corpo de moça. Uma mulher ativa, até na horizontal. Quem não quer uma mulher assim? Ele. Porque a diferença é abissal, entre o desejo dela em ter alguém, e o dele em permanecer sozinho. É difícil ela entender que, uma mulher com tantos predicados, atitude e amor para dar, não seja de interesse dele. Ele explicou, meio que superficialmente, que a solidão lhe ensinara muito, mas tanto, que até resolveu oficializá-la como companhia. Não chega a ser loucura ter a solidão como companheira, mas passa perto. Ele não sabe namorar. Até a prática na cama não foi a contento. Mas ambos gozaram e riram. Ela se arrumou e foi embora lá pelas quatro da manhã de sábado. Ele, mais uma vez, confirmou sua tese de que aparece na vida das pessoas para lhes fazer um favor, um conselho importante, uma sugestão progressista, alertar sobre um descaminho, apontar um endereço certo. Não foi diferente, indicou a ela uma terapia alternativa, pediu retorno, não teve. Sempre assim. Ele, equivocadamente, se acha no direito de interferir (mesmo que por sugestão) na vida alheia, não obstante seja ainda um profissional da saúde e estudioso no assunto. Novamente, não deu certo. Já foi o quarto caso, sem feeback algum. Pelo menos, ele tentava. E ela, de outro jeito. Ele mudou um pouco sua opinião sobre os buscadores. Aqueles que não o fazem por medo, merecem compreensão. Ela, é que deve ter mudado de opinião sobre os céticos, melhor: reforçado. Num dado instante, ela disse “vou te conquistar”. Ele pensou baixinho “o faça com quem tenha amor pra dar.” Arriscou falar isso, em palavras semelhantes. Para bons entendedores, meia noite basta. Podem ser amigos, por quê não? Há filhos que nascem com anencefalia, e vivem um pouco; ele não tem mais coração, e sobrevive muito. Ele respeita o sonho dela, foi sincero em relação ao futuro. Ela respeita a insônia dele, foi sincera em relação ao presente. A liga se fez adulta, descompromissada, honesta. Ambições emocionais diferentes. Que bom que ela entendeu. Que bom que ela riu. Que ela gozou e que ela surgiu. Pois ele confirmou que nem diante de um amor em potencial, consegue ter força de união. Van der Waals, pontes de hidrogênio, dipolares, tudo isso para ele ficou no cursinho. Ela, professora primária, ele sem pós-graduação. Ela, um sentimento em semente, ele um jardim estéril. Ela, uma só esperança, ele um só desamor. Ela levou seu conselho para a casa. Ele se sentiu honrado pela visita de um enorme coração. A "casa" dele, é muito pequena, é cômodo para um só, é lar apenas para uma solidão. O reencontro não foi a toa porque eles, tão diferentes, compartilham a mesma música número 1. Ela vai encontrar seu par. Ele já se identificou singular. Tudo porque, enquanto ela ainda se chama moça, ele um dia se chamava homem... 

Clube da Esquina nº 2 - Lô Borges & Milton Nascimento




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