terça-feira, 24 de outubro de 2017

penLamentos













Posso fazer algo comum, mas de uma forma diferente. Posso deixar que pareça, eu não me importo se os outros molham seus pés no rasinho ou mergulham no mar; eles são eles e só, aprendi na vida e na música, não sei com a qual me deparei primeiro. Segunda-feira pela manhã, clima tipicamente choroso de garoas, aquele frio que não me alcança. De manga de camisa (ou vice-versa), adentrarei ao Municipal, meu quartier brasileiro da paz mundial. Fiz isso umas quatro vezes no passado, é hora de voltar. Ignorarei as poças e as pessoas estranhas que estarão lá, pois eu também sou assim para elas, talvez mais. Na capela da família, do lado de fora, algum relevo de cimento me sustentará sem guarda-chuva. E eu soltarei o verbo, dentro de mim, em silêncio. Ali, e só ali, a reflexão é mais intensa. Diferente do mar e da floresta, cada qual com sua energia ambiental. Não tardará e as lágrimas irão se misturar com a chuva, a garoa. Alguns minutos de meditação, um papo imaginário com um amigo que se foi antes de nos tornarmos amigos. E pronto. A floresta está longe, o mar também e só deu tempo de ir ao cemitério. Eu não sei rezar. Sei cantar, mas é para mim mesmo. Costumo olhar para o céu e para as lápides das famílias vizinhas, pensando quanta gente já passou por aqui. E quanta gente nem vem aqui. Quanta gente processa de outras maneiras seus ‘penlamentos’*, e quanta gente deixa estar. Após o alívio imediato e algumas saudações imaginosas, vou passear na alameda central, sob os cedros, coisa que adoro, longe de qualquer atividade semelhante a comunidades paralelas da sociedade notívaga. Leio o bronze dos túmulos, só os interessantes, de simples ou de exagerada arquitetura, cujo destino é sempre igual, muda somente o teor do legado. Desnudado da armadura urbana lá de fora, eu atravesso a história da cidade, cruzo o tempo das famílias, e sempre concluo que o local não passa de um enorme hotel de trânsito, um trânsito simbólico, onde podemos voltar e simbolicamente louvar quem quer que queiramos. Nem precisa louvar, basta uma daquelas saudações. Ou apenas uma visita, rápida que seja, não é obrigatório trazer flores. Quanto mais simples, melhor. Igualmente ao que deveria ocorrer entre vivos. Mas cada um sabe o que faz de sua história, de seu tempo. Cada um sabe o que faz na sua quadra, em sua cidade. E também, aquilo que não faz. Reconhecer, eis a questão... 

*penlamentos: reflexões sentimentais sobre aquilo que não aconteceu. 



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