sábado, 7 de março de 2015

Contos sob a copa das Araucárias

 O REVERENCIAL 




Curvei-me, em posição ventral, ou fetal, lá sei de Medicina. Dizem que assim buscamos proteção, como se voltássemos ao útero materno, impossibilidade diagnosticada pelos pensadores empíricos, o mundo analógico das descobertas. Naquela manhãzinha de sábado, pés gelados de não circular sangue quente, era meu recurso para acalmar as oscilações sensoriais de um estômago mal acostumado a digerir as coisas engolidas nas sempre vésperas do nada, pela boca da consciência. Uma dor sui generis, minimizada pela minha porção animal, em recolhimento como que diante de uma presa invisível mas iminente. Cobri-me com a coberta da vez, iniciando uma visita interna, labirinto parcial que não implora por exploração. É um portal facultativo, com imagens de todas as pessoas que por mim passaram, a maioria em sépia, já muito desgastadas pela ação do tempo, dizimadas pela ação do espaço. Dá para um cemitério clandestino de amores, com todas as mulheres mortas que velei. Clandestino porque não foram amores, não passaram de viagens desautorizadas em tentativas pra lá de aventureiras, equivocadas por excelência e experimentação. Todas mortas. Das tímidas às buscadoras, das caladas às falsas, das cumulativas às posseiras, das maldosas às insanas, das indiferentes às demasiadamente diferentes. Todas as (minhas) mulheres mortas. Não havia flores sobre os túmulos, apenas as lápides com os prenomes, sem datas que pudessem identificar seu tempo. Grandes distâncias entre elas, tal a não comparação que eu jamais admiti. Todo relacionamento era novo, era chance, oportunidade de amanhecer. Misturar gentes, seria misturar corpos, misturar almas, algo tão imoral quanto cruzar espécies diferentes, não fiz isso. A grama era verde, as árvores cedrinhos, caminhos de paralelepípedos e sol. Pradaria que se perdia no infinito, grande campina abrigava os últimos memoriais. Quando chego à frente de um túmulo de alguém específico, lembro as razões pelas quais não deu certo. E me respondo embravecido comigo mesmo, que eu não devia novamente voltar ali. Que eu só volto porque ainda não sei dominar o espaço, em relação às mortes mais recentes, por isso a reminiscência temporária. Mesmo que seja uma recordação instantânea sem uma mínima gota de esperança, de saudosismo, de arrependimento, de tristeza até. Voltei lá, pelas mãos do pensamento fugaz, porque um dia aquilo foi vida pra mim, não importando se digna ou não. E também por não trazer nada disso comigo, fica apenas num canto da memória, quase mofado de não lembrar. Nossos jazigos podem ser destruídos, mas as mortes serão eternas. Depois da visita, voltei à atualidade, pensando nos coitados dos que rondam pelos seus passados o tempo todo, ou mesmo regularmente. Estes, são gente que ignora o próximo passo, a outra cidade, a nova casa, o novo amanhecer, a nova possibilidade. Ignoram também toda forma de princípio. Talvez eles não sintam dores como eu, mas a minha é passageira, ora lancinante ora intermitente, mas que se acaba (tanto que há o cemitério, que é justamente para isso): basta que eu levante da cama. Fico imaginando onde é que as outras pessoas guardam seus extintos amores verdadeiros, não clandestinos. É, elas devem sofrer bem mais do que eu. Um sábado aqui, outro ano que vem, talvez nunca mais. Aprendi com um poeta, que “o passado é um caixão aberto, num velório inverso e permanente, onde o corpo presente é o nosso..”. E o que eu sei também, é que preciso abrir a janela, antes de me embrenhar em qualquer amanhecer...antes de me curvar, cobrir ou desbravar, eu tenho é que me permitir um pouco de luz natural... 



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