segunda-feira, 9 de março de 2015

Contos sob a sombra dos Cedros


 O DIA DEPOIS DE MIM 

Tchau. Só em pensamento, pois não houve tempo para me despedir. Acho que não mudaria muita coisa. E não é que amanheceu? Claro que haveria de amanhecer. E foi um esplendor. O sol esticou os braços no leste por detrás da serra, afastando nuvens como se fossem lençóis, quase que abençoando a minha cidade de cor nitrogênio. Um dia lindo se anunciava naquela alvorada. Pássaros cortando o horizonte de quem procura o tempo no céu, flores desabrochadas deleitando-se de luz nos jardins. Leites, cafés e pães na mesa dos acordados, dispostos ou não em plena segunda-feira, dia que também pode ser tão bom quanto outro qualquer. Pessoas e veículos automotores começam a trafegar na direção da semana, em prol de sua labuta, seus compromissos, afazeres e lazeres, alguns já pensando no próximo descanso. No centro, engarrafamentos. Nos bairros, congestionamentos. Na periferia, lamentos. Em toda parte gargalos de movimento, coisas da explosão demográfica das capitais mal planejadas e desenfreadas, mas renitentes. Nas praças e nos parques havia gente se exercitando, bem como nos escritórios, nos consultórios, no comércio e prestações de serviços em labor, igualmente os estudantes, todos buscando dias melhores para si e para os seus. Na hora do almoço, a restauração orgânica. Filas, filés e folhas alimentando o sistema. Mendicância, corrupção e violência se desenvolvendo e involuindo ao longo do dia. Uma tarde sem muitos chás, trouxe uma noite de recolhimento caseira, com lanches até para as famílias de um só. Exceção feita ao jogo do meu time, que perdeu mais uma vez fora de casa, rotina acompanhada via satélite no conforto dos lares e bares naquela véspera. Meus amigos se falaram pelas redes sociais, meus colegas também, meus parentes ao telefone. Pronto, tinha passado o tempo. Nada de anormal acontecera neste dia, o primeiro dia depois da minha morte. A vida continua sem nós, o mundo não interrompe nem suspende, segue a experimentação humana. Nossa ausência nada mudará, apenas transformar-se-á dentro de cada um que, quando estávamos em vida, pensava em nós, sem importar quanto. No que nós nos transformaremos, dependerá de cada qual. Uns, farão saudade. Outros, lembrança. Poucos lamentarão. Quase ninguém chorará. E não haverá uma só pessoa que se revolte. Pois o indignado em todo o curso de minha história, fui apenas eu. Não conheci outros escritores, ou poetas, ou quaisquer indivíduos que abraçaram o delírio como companhia. Sei que o mundo seguirá mais leve, livre da carga de minhas frases, da acidez de minhas palavras e do fel de minhas letras. Mas as frases, as palavras e as letras, eram de todos, não somente minhas. Emprestei-as, não paguei a ninguém. Minha dívida, é comigo mesmo: não fui capaz de transformá-las no viver. E virá o depois de amanhã, que não será logo depois de mim, será depois de um outro qualquer. Na praia, havia alguém parado olhando o mar, buscando firmar um horizonte. Parecia comigo por tal contemplação. Talvez essa pessoa tivesse tanta habilidade quanto eu para discorrer sobre as coisas da solidão e da morte, sem demonstrar tristeza, apenas propriedade. E com isso, valorizar as alegrias e os sorrisos, os momentos e os lugares, os movimentos e os encontros. Poderia ter sido meu amigo ou minha amiga, mas eu não olhei para o lado quando a gente se cruzou numa esquina da vida...



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