terça-feira, 3 de março de 2015

Crônica Cotidiana 14



Joana tinha um buço saliente, incômodo. Há tempos desistira das ceras quentes, suplício medieval que perdeu para a modernidade das lâminas tipo exportação. Assim como o café, peculiares coisas do Brasil, país onde se definiu pela gangorra comercial que é melhor importar trigo do vizinho prateado de baixo. Suas marcas, visíveis eritemas, eram camufladas com maquiagens de última geração de uma botica de renome. À noite, rosto limpo, faixa vermelha sob as narinas. Cada primeiro beijo era um mistério, não pela boca alheia, mas pela reação consequente ao olhar depois do ato. O trauma de adolescência lhe trouxe a alcunha de ‘chupa-chupa’, criada por algum infeliz com distúrbio sexual abandonando latência. Houve quem reclamasse do gosto do pó, outros se sentiram esteticamente enojados, sem falar nos que correram feito meninos, o que nunca deixarão de ser. Isto a levou ter mais trânsito entre as mulheres. Quarenta anos no registro geral. Cabeça de trinta e cinco, tronco de trinta, e membros de vinte e cinco anos. Mulheraço, até para elas. Naquela terça-feira, desceu correndo da aula de ginástica para o banheiro, onde entrou com uma amiga. Enquanto a malha furta-cor convidava feito segunda pele ao toque, o semblante era defensivo, a ponto de rejeitar simples cumprimento, por consequência, a repulsa dominava seus ambientes. Tentaram disfarçar o impossível, os cabelos remexidos revelaram o encontro. Seu buço estava corado. Sua amiga tapou o pescoço. Cinco minutos de emoção deslocada, deliciosamente proibida. Seu tipo masculinizado de olhar, não afastava a sensualidade extremamente feminina, menina, felina, tudo ao mesmo tempo. Num hipermercado, ela conheceu Haroldo, sujeito dez anos mais velho que lhe alcançou o pacote de Activia que ela tinha derrubado no chão. Ele se apaixonou de imediato, ela só queria inovar com um mais velho. O email, o celular, o jantar e a cama. Ela demorou-se a gozar, em razão de um anticoncepcional injetável que bloqueava sua testosterona. Ele, porque tinha oligospermia, controlava-se economicamente. Prometeram juras de amor. Ela ganhou presentes, ele recebeu declarações. Ela recebeu carinho, ele ganhou publicidade. Ela fazia planos, ele fazia contas. Ela procurava alguém, ele achou que tinha encontrado. Dois perdidos fazendo do acaso uma obra do destino, mesmo sem planta alguma registrada na sessão de amadores do CREA. Foram seis meses de altos e baixos. Desunião, desinteresse, resgates. Renascimentos seguidos por mortes de vontades, desejos e esperanças. Ele partiu para dedicar-se à sobrinha da japonesa da barraquinha de empanadas da feira volante, recém-chegada de Paranavaí, dezesseis anos de ingenuidade, feinha a coitada, mas era o fetiche dele. Ela, Joana, voltou com a amiga do banheiro para um relacionamento sério digno de estampa em rede social, assunção de um amor iniciado pelo sexo, poderia ser que desse certo. Ele, Haroldo, onanista cavalheiresco, deixou que a japonesinha lhe tirasse a cueca, permaneceu de meias. Elas combinaram de andar apenas de vestidos, livres por de baixo. Pelos no buço dela e na mão dele: básico instinto em dominância completa sobre sensações e pensamentos, condutas e comportamentos. A ciranda de amor e sexo, volta e meia sofrendo ingerências ambientais, cuja musiquinha que inicia a dança não esconde a letra entoando que a carência dos eternos e aventureiros caçadores, forma caudalosas cataratas sobre a visão da consciência...


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