quarta-feira, 25 de março de 2015

Contos da Patagônia



 “Carnes Argentinas Y Otras Cositas Más.” 

Estava escrito no rodapé do cardápio às minhas mãos. Eu não pedi ‘ojo de bife’, estou meio avesso às carnes ultimamente, devo estar ascendendo a algum lugar que eu não sei. Meu paladar não aprecia muito a culinária da região do Rio da Prata, penso que os fãs o são em virtude do sangue latino, se não o forem pelas papilas gustativas, enfim. Mas havia algo de encantador naquele jantar de aniversário de parente, não na mesa comemorativa, mas numa outra ao lado, em minha frente. Um casal. Um jovem casal de meia idade. Ele, aparentando uns 54, ela no máximo 48. Bem apessoados, de frente um para o outro, terminando a refeição-propósito, feito evento que não esconde o interesse maior do que o esperado, neste caso a restauração nutricional. Descrições à parte, os olhares eram recém-nascidos. Mesmos olhos, para outros horizontes, formam novos olhares. Via-se brilho, luzes caindo pelos cantos das bocas nos sorrisos. Ele mais solto, gesticulador, jogando charmes; ela comedida, reservada em comportamento, jogando sedução: ambos sem malícia. Vez em quando, ele estendia a mão e tocava no braço dela, ainda descoordenadamente, em função do pouco tempo de união. De repente, combinaram um lugar, para irem Juntos: um “vamos”, que ressoou no ambiente como “já fomos”. E como é bonito observar as coisas nascentes do mundo. Quem vê isso através da inveja, deve ser cego de todos os sentidos. Eu não, pois aprecio essa dança, um bailar de expressões corporais, faciais, coisas lá de dentro parindo sobre as mesas de aproximação. Abomino gente que se senta lado a lado, revelando insegurança, medo e falta de orientação no espaço, com o pobre argumento de ficar mais perto para poder beijar sem quebrar a compostura, sem ferir a etiqueta: trocar restos de comida já processados pela amilase salivar, interrompendo o início da digestão, faz do relacional um absurdo ao misturar ansiedade e ânsia. Eles não, permaneciam corajosos enamorados, comunicando-se por todas as formas de linguagem possíveis. O tanino da bebida acelerava os corações, o etanol liberava seus centros frenadores, eles regozijavam uma importante particularidade de suas vidas em público, assunção de sentimento, mais do que isso, perspectiva. Perspectiva, aquela coisa que me dá de vez em sempre e me faz ser o nômade que eu adoro ser. Que par bonito, uma sintonia rara desenhava-se na cartolina da freguesia naquele restaurante argentino, servindo ludicamente dois amantes amadores, tal o clima de princípio no ar. Tempos atrás, quando ainda era bar, levei uma colega lá mesmo, onde papeamos e sorrimos à beça: Juliana teve medo, me faltou coragem, pois ambos éramos casados, então optamos pela submissão às tradições civelmente contratuais e não sermos felizes daquela forma. O tempo não perdoa quem o desrespeita no espaço que ele oferece. Não deu para imaginar os próximos dias daquele casal, eu precisaria ter escutado a sua conversa. O que eu percebi também, foi que eles deixaram um pouco de comida em cada prato, envergonhados que estavam por desconhecer as prováveis boas maneiras um do outro, típico de começos. Ele pagou sua parte em dinheiro, ela no cartão. Ela levantou-se para ir ao banheiro, bela mulher em belo corpo. Não reparei se ele a devorou com os olhos, não sou vesgo. Ela voltou, ele deu o troco para ela, não entendi. Levantaram-se e foram em direção à vida. Quando vi, meu pessoal já nos ‘postres’, reclamando que eu estava quieto demais naquela noite. Respondi que era em razão de um remédio que tomei para aquietar minha histamina, revoltada contra a ingestão de um suco de laranja artificial contendo tartrazina no fim de semana, eu não sabia que era artificial. Reconheço apenas amores naturais... 


Levantei-me e fui em direção à minha. Fiquei feliz, por saber que existe gente no mundo que é movida por esta força leve. Tomara que seja recíproca, eles poderão ir longe, muito além daquele lugar que programaram. E por incrível que pareça, isso não me afetou em nada em relação à minha solidão. Porque tenho comigo uma palavra fronteiriça, a solidez. É minha porção rocha, elemento mineral que carrego em meu processo evolutivo. Já vivi sensações parecidas, embora incomparáveis. Enquanto o amor flui, o desamor lança, ejeta, dispara, catapulta, propulsiona. Por isso, minha condição nômade. Por isso, não estou mais aqui. É meu ritmo, vou sem pressa para outro lugar, onde talvez eu encontre outro casal começando um relacionamento, ambos compartilhando chances, palavras e carinho, um mundo novo livre de passados. Se sobrar algum ponto angular de vista, eu escrevo sobre eles. Fico feliz em discorrer sobre amores. Se eu amasse, eu não escreveria: eu iria apenas conviver... 


ps: quis fazer desta, minha última coluna neste espaço. mas então me lembrei de que, se eu amasse, eu não escreveria... 


 - "Camarero! Otra sobremessa, por favor." (BIS)
 - "Mirusia! Bravo!"   
 > Andre Rieu, Johann Strauss Orchestra & Mirusia Louwerse 
 "Don't Cry For Me Argentina" 


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