'CONTIDIANO'
Naquela terra distante, numa pequena localidade característica de
vilarejo perto do oceano, todos os dias há uma espécie de baile ecumênico, para não dizer
laico. Quase todos os habitantes dali se reúnem para dançar o folclore típico
da região, ou simplesmente escutar músicas, conversar e contar estórias em
volta do fogo. O som toca o dia inteiro, mas eles começam a chegar à tardinha.
Nessa festa, que já faz parte da cultura local por ter se tornado costume,
tradição, todos interagem entre si, não havendo espaço para animosidades,
diferenças, preconceitos, timidez e tudo aquilo que pudesse afastar ou não
aproximar os afins e principalmente os opostos. Pode-se, por exemplo, observar o Sim e o Não dançando
coladinhos, rosto no rosto. Sentados à mesma mesa, vê-se o Talvez, o Quem Sabe
e o Improvável dando sonoras gargalhadas juntos. Numa roda de papo, estavam o
Nunca, o Não Sei e o Sempre discutindo sobre algum esporte qualquer. A banda, que
era formada pela Lembrança na bateria, Dó nos teclados, Esquecimento no
contrabaixo, Anunciação no violão, Fuga no sax alto e Desprezo na guitarra, tinha a Saudade como
vocalista. O casal mais elegante da noite era a dupla Pensamento e Sentimento. Mas
eram Passado e Futuro que ficavam chamando o Presente que não queria levantar
da cadeira para dançar. Quem também ficou o tempo inteiro sentadas comendo,
foram a Distância e a Visita. Só de sarro, o Sorriso pediu a mão da Tristeza,
fazendo com que a Alegria tivesse que abraçar a Lágrima. No bar, totalmente
bêbadas, a Reciprocidade servia mais uma dose para a Indiferença. Mais ao
fundo, não reservadamente, o Sol e a Lua trocavam carícias apaixonados, onde bem pertinho
a Certeza dava um beijo na boca escancarada da Dúvida. Solidão e Companhia
corriam alegremente perto da fogueira como se fossem crianças brincando feito
novos amigos, atrás delas vinham Razão e Emoção, igualmente felizes. Numa relva
próxima, Amor e Desamor abusavam de uma afetuosa e descompromissada relação
sexual. Já dentro do banheiro, a Atitude pegava a Omissão por trás. Uma discussão acalorada entre a Sensatez e o Maniqueísmo na fila dos ingressos, Dona Virtude apaziguou. Assim como fez na confusão que o Recomeço provocou querendo tirar o Fim da festa, mas não se meteu na discussão entre a Coragem e a Covardia, deixou que a primeira bem aconselhasse a outra. Também não foi preciso intervir na bagunça que Indignação, Filosofia, Eloquência e Escrita faziam na frente do palco, elas eram só folia. Sentada num cantinho, a Leitura contemplava o movimento. A Interpretação fiscalizava tudo, com auxílio do Equilíbrio e as trapalhadas do Imediatismo. Vida, Morte
e Sobrevivência passeavam pelo salão observando os outros presentes. E havia tanta gente no evento, que nem cabe aqui, uns não os vi dessa vez, outros sequer lembrei. Interessante,
é que isso não era rotina para ninguém. Um amálgama entre ligas das mais
diversas nobrezas, uma comunhão entre os mais diferentes credos, um bioma de
sensações distintas. O mundo completo, meridianos aproximados, trópicos
estreitados, polos abraçados, suprimidas as latitudes e longitudes, tudo estava ali. O ser e o não ser de todas as coisas,
reunidas num homem só: a festa na vila da minha consciência, onde sou ao mesmo
tempo anfitrião e único convidado. Levo tudo isso em mim, e tenho que fazer com
que eu regozije, sem piscar. Preciso seguir leve, considerando todas essas
sensações, as minhas que eu trago ou ofereço, as dos outros que eles escondem ou carregam. Do possível ao impossível, relevando meus valores em detrimento dos desvalores dos outros, incompatíveis penetras que tenho por ofício expulsar daqui. Acordar todas as manhãs e entender que isso
representa uma nova chance, uma luz, uma esperança mesmo que não se saiba em quê.
Atravessar todas as tardes e compreender que isso significa um trabalho, uma missão,
um destino mesmo que não se imagine por quê. E deitar todas as noites e me perguntar
se isso tem uma explicação, uma lógica, um sentido mesmo que nem se desconfie para quê. Enfim, a
sina de construir ciência sobre tudo, até mesmo sobre o silêncio do sereno que recai em orvalhos todas as madrugadas sobre meu jardim sem aquela flor, mulher que singra tempo e espaço, meu desejo em
plenitude e latência. Sim, esse é meu bastante conto-cotidiano, com orgulho. Encaro isso tudo como
uma festa, é o meu jeito de gostar da vida. E como a festa é apenas minha, só não
convido a Perspectiva: como é ela quem organiza tudo, fica de fora para que, realmente, possa
haver um novo amanhã...o baile seguinte...e o próximo conto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário