quinta-feira, 12 de março de 2015

Contos sob a copa dos Pinheirais


 "A Bailarina e o Mestre"  


Face de boneca. Daquela universitária com biotipo de bailarina. Sentada na carteira da frente, abria-se ginasticamente em tal espadarte que o professor suava a matéria. Não bastasse, o momento era de um pompoarismo velado, profundo, ao mesmo tempo contagiante para alguém que percebesse, mas não houve quem se habilitasse, afinal o ambiente era, em tese, acadêmico. Ignorada pelo mestre, o qual tentava se concentrar nos descaminhos da doutrina da hora para não revelar seu bastante despreparo diante de tal inusitado, ela continuava em ritmo alucinante só para ela, sem mexer um músculo descoberto, naquele corpo magro de desafiar terceiros, tão estático quanto um totem no coração da América do Sul. Os orgasmos invisíveis e sequenciais de Sara marcavam indelevelmente o assento azul escuro, deixando uma circunferência negra que aumentava feito pedregulho mergulhado em câmera lenta num lago planaltino qualquer. Quando despontava um leve sorriso no canto da boca, a certeza de mais um clímax sereno e a soberania transnacional revelada pela autonomia de gozar, em que território fosse. Bandida? Tara ou desvio psicótico ligado ao sexismo da modernidade diluente de valores morais? Estaria ela, sendo assim, antiética? Quantas qualificações receberia dos inabilitados juízes de plantão a condená-la de ofício sem o impopular contraditório? Quem tem moral para falar de ética num planeta onde o autocuidado se encerra na porta de casa, limitando-se a circular nos lares nem tão doces assim como contam as estorinhas folhetinescas do devir? Mas o Frei leonino bem nos lembrou de que a moral é filha da ética. Uma ética-mãe que só fez parir, depois voltou à sua natureza animal, humana ou algo assim. Uma mãe individual mas aberta, própria mas exteriorizada, particular mas coletiva, importando é que sempre vise o bem. Gozar, fazia o bem para Sara. As bem cumpridas normas de Nelma lhe agraciaram com um diploma e um troféu-prêmio tipo Nilo Cairo, Hugo Simas, De Rose, o nome certo desinteressa, mas foi a melhor dos últimos anos dentre todas as da Nação, no paralelo curso emancipatório de mulheres dignas de tempos melhores para sempre. Se o seu ethos como morada era a felicidade naqueles pequenos atos que não afetavam ninguém, como julgá-la, meus nobres e ambulantes baluartes da arbitrariedade? E se a moral é um costume, com carga genética semelhante à da madona fugidia, esse hábito era um valor que fazia parte de sua cultura. Não, Sara e sua práxis não usual era mesmo irrelevante para embates de qualquer e toda natureza. Ela atravessou os bancos acadêmicos, trazendo alegria para os estofadores terceirizados daquela instituição de ensino. Seu docente, um cinquentão que voltou a ser discípulo assumido de Onan quando tornou a dar aulas para ela no nono período. Mas eles jamais se falaram, sequer se entreolharam, para ao menos dialogar sobre o que apenas eles dois sabiam na jornada não declarada daquele curso superior. Das coisas reais que existem na vida, e recusamos a comentá-las, por não termos estrutura para lidar com o inusitado, o diferente, o incomum. Então as pessoas acham em função de seu imediatismo, que discutir determinados assuntos é imoral, antiético e/ou deve haver algum interesse escondido. Tal qual  oferecer um poema a uma dama, que na verdade é como ofertar uma flor: gesto simples, cálido e livre de vontades. Mas as pessoas dessas capitais não têm o costume de lidar com as coisas simples, belas e libertas da vida. Sara se formou e foi viver, dançar e nadar em Sete Lagoas. O professor faleceu e sua hiperplásica e (não) pecaminosa mão direita foi disfarçada por um pequeno maço de rosas no caixão. “A Bailarina e o Mestre”: um conto verídico, encerrado por uma singela ficção, desvio voluntariamente alternativo como acontece com tudo aquilo de bom que deixamos para trás em nossas vidas, fazendo da omissão e da indiferença, estradas para lugar nenhum...


Nenhum comentário:

Postar um comentário