quinta-feira, 19 de março de 2015

ELEGIA 96

 ELEGIA  96 

Todo amor teu é uma invenção. Encontras a qualquer tempo peças cardíacas abandonadas pelas casas noturnas, nos bares praianos, praças festivas, blocos de carnaval ou mesmo em inocentes aniversários. Recolhe-as feito o carrinheiro os recicláveis das calçadas, ou às vezes como o mendigo fez com os restos de comida pelo chão e nos latões das ruas. Mas tu és nobre, operando em lugares de modernidade. Se as peças não receberem de ti um imediato banho de saliva, coloca-as no saco dos teus desejos e leva para onde for sonhar. Dia seguinte, lubrificas teu coração igualmente desconjuntado, tentando amoldar àquele incompleto maquinário encontrado ontem. Não houve encaixe, e nunca haverá, mas tu não desistes da tentativa de montar um modelo convencionalmente social de aparição, o casal-engenho. Desfilas a dupla pela cidade maquiando ideias divergentes e a passos tortos, mas seguros para não dizer pendurados em mãos dadas, o símbolo da união afetiva, da felicidade conjugal, o desiderato humanoide. Mas és principalmente símbolo do amadorismo científico, onde eleges o empirismo em detrimento do destino, votando nos corpos alijando o diálogo, comprovando que és capaz de conquistas, mas sem o crivo da inteligência. Nem cientista, nem engenheiro, muito menos mecânico, longe de ser artesão, tampouco politizado de sentimentos. És um desqualificado, fazendo de tua vida um laboratório de experiências forçadas, que entram em curto, explodem ou desmontam a cada momento em que a existência requeira um determinado princípio. Pois fostes logo ao fim, antes de construir os meios. Vida engrenagem, retificando compulsoriamente os corações em nome do status relacional. Pobreza disfarçada, necessita de formação, instrução ou um mínimo de consciência. Até que numa eventualidade descubras que o amor natural, ele vem pra cada um: não é preciso catar... 


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