ELEGIA 96
Todo amor teu é uma invenção. Encontras a qualquer tempo peças cardíacas abandonadas pelas
casas noturnas, nos bares praianos, praças festivas, blocos de carnaval ou
mesmo em inocentes aniversários. Recolhe-as feito o carrinheiro os recicláveis
das calçadas, ou às vezes como o mendigo fez com os restos de comida pelo chão
e nos latões das ruas. Mas tu és nobre, operando em lugares de modernidade. Se
as peças não receberem de ti um imediato banho de saliva, coloca-as no saco dos
teus desejos e leva para onde for sonhar. Dia seguinte, lubrificas teu coração
igualmente desconjuntado, tentando amoldar àquele incompleto maquinário
encontrado ontem. Não houve encaixe, e nunca haverá, mas tu não desistes da
tentativa de montar um modelo convencionalmente social de aparição, o casal-engenho.
Desfilas a dupla pela cidade maquiando ideias divergentes e a passos tortos, mas
seguros para não dizer pendurados em mãos dadas, o símbolo da união afetiva, da
felicidade conjugal, o desiderato humanoide. Mas és principalmente símbolo do
amadorismo científico, onde eleges o empirismo em detrimento do destino,
votando nos corpos alijando o diálogo, comprovando que és capaz de conquistas,
mas sem o crivo da inteligência. Nem cientista, nem engenheiro, muito menos
mecânico, longe de ser artesão, tampouco politizado de sentimentos. És um
desqualificado, fazendo de tua vida um laboratório de experiências forçadas,
que entram em curto, explodem ou desmontam a cada momento em que a existência
requeira um determinado princípio. Pois fostes logo ao fim, antes de construir
os meios. Vida engrenagem, retificando compulsoriamente os corações em nome do
status relacional. Pobreza disfarçada, necessita de formação, instrução ou um
mínimo de consciência. Até que numa eventualidade descubras que o amor natural,
ele vem pra cada um: não é preciso catar...
Nenhum comentário:
Postar um comentário