terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Crônica Cotidiana 1


Para ler...
[Carro na oficina: busão city-tour. Segunda-feira, Tarumã > Ecoville (UP) e retorno. Terça-feira, PUC > Tarumã. Linha 208 (Aeroporto), conexão parada tubo da Salgado Filho. Lá dentro, um jovem cego falou:
-“Esse é qual?” – fiquei quieto, porque pensei que ele perguntava para uma senhora que estava junto dele. Aí ele bradou a mesma coisa novamente, respondi:
-“Inter II.”
Entrei por uma porta, ele por outra. Fiquei na rótula, me sentindo um pedaço de menisco deslocado no centro da articulação. Fui mais pra frente, ficando em pé atrás do banco do jovem cego, onde sentou um senhor com biotipo de frequentador de gafieira: terninho de linho, suspensório, sapato bicolor e tais. O final do papo dos dois (depois de eu rir quase escancaradamente do começo, quando eles davam altas risadas):
-“...e diga aí meu rapaz: em que você vai votar?”
-“Olha, meu senhor...a gente só vê mentira. Tudo enganação, promessas, mais nada.”
-“É mesmo. Mentem de tudo quanto é lado. Esses dias falaram que botam dente na gente sem dente que a gente pode na hora sair do consultório e ir comer churrasco (fazendo o gesto de devorar uma costela, para um cego): mentira, tudo invenção, só pra gente cair. Imagina, colocar um troço na banguela e sair mordendo...”
-“Vê se pode uma coisa dessas! Até os médicos mentem pra gente.” – cego indignado.
-“Isso. Olha que eu tenho 3 planos de saúde. AMIL, SINAM e mais o da Caixa.”
-“Eu só tenho um plano. E é de auxílio funeral. Falando nisso, quer comprar um? Sou vendedor. – disse o simpático e falante cego alcançando um folder pra senhora em pé ao lado dele e outro para o vizinho de banco, o da gafieira.”
-“Obrigado.” – agradeceu ressabiado o senhor, talvez pensando se aquilo era algum tipo de aviso.
O jovem cego despediu-se e desceu no terminal do Capão da Imbuia. Sentei ao lado do senhor (senhor da gafieira, não de Jesus, eu ainda não morri, e sei que não mereço esse lugar, se é que existe tal “lugar”). Falei pra ele:
-“O que o senhor estava falando quando o moço desceu?”
-“Ah, eu tava dizendo pra ele que esse troço de saúde tá tão virado, que as pessoas tão se matando hoje em dia.”
-“O senhor sabe qual é a profissão que tem o maior índice de suicídio no mundo? A Odontologia, os Dentistas.”
-“Sério? Pois saiba que lá no bairro, Jardim Pinheiro, um cara de 40 anos se matou a semana passada.”
-“Por quê? Dividas?”
-“Nada. Foi porque a mulher dele largou ele com dois filhos, pra se juntar com uma sapatão. Uma sapatão! – ele gritou no meio do ônibus, todo mundo olhou pra gente.
-“Mas isso não é tão anormal hoje em dia.” – tentei amenizar a gravidade do acontecimento.
-“Ah, e também porque o filho dele era boiola. Boiola!” – gritou de novo: o povo do bus já achando que ele tava xingando alguém.
-“Mulher sapatão, filho boiola e cachaça: meteu bala na cabeça!” – eu me matava de rir por dentro, coisa tipo Polícia-24horas demais pro meu gosto.
-“Não era motivo pra tanto, ele devia ter procurado ajuda.” – disfarçando a comicidade da narrativa da tragédia, não dela propriamente.
-“Ah, e lá no bairro uma vez (mas que bairro hem...) um dentista passou AIDS pra mulher dele: ela se matou e depois ele se matou também. Mas tudo isso é coisa do Cramunhão, só pode.” – sentenciou o senhor.
-“Desculpe-me, mas eu discordo. Pra mim, diabo não existe.”
-“O que existe é o bem e o mal. Mas o mal, é praticado pelo Diabo, não sabe disso? Veja esses caras que bebem e saem dirigindo, matando os outros, é tudo coisa do Capeta! Semana passada lá no bairro um animal bebeu e matou um pai de família. Pagou fiança e saiu pra responder livre. Pode isso?”
-“Pois é...viu o caso do deputado?”
-“O Carlos Filho?” – concordei...
-“Isso. Mais de cinco anos e até agora nada de júri popular.”
-“Você veja aquele advogado dele...o Said...como é que é...Samud...”
-“Elias Mattar Assad.”
-“Esse mesmo, o criminalístico.” – sensacional esse povo brasileiro.
-“E veja aquele Dotti lá, defendendo o Carlos Filho!”
-“Mas ele tem direito de se defender. Curiosidade é que o Dotti quis invalidar o laudo do exame de sangue do deputado porque foi feito pela Dra Virgínia, a dita monstra do Evangélico.” – deu um nó na cabeça dele.
-“E sabe a mãe do piá que morreu no acidente, que agora se elegeu? Conheço ela, toda a família dela, é só tragédia. A irmã dela... – lhe interrompi, dizendo que esta tinha sido minha vizinha, que era muito bonita.”
-“...morreu de Lupo. De Lupo! – gritou de novo e de novo o pessoal olhou, mas agora não entendeu nada, decerto achando que ele falava das meias Lupo...
-“É...a nora dela também morreu queimada no chuveiro.” – contei, me sentindo um telespectador assíduo do Marcelo Rezende.
-“E sei também que um deles morreu de suicídio. E outra da família foi de anemia! Anemia! – dessa vez foi tão alto que até o motorista virou o pescoço.
-“E teve um cunhado dela que foi morto no sinaleiro porque não deu um Rolex.” – mudei de canal como se fosse um fã do Datena.
-“É...tudo isso aí é por causa do Diabo...e olha que eles são tudo evangélico!”
-“Não seria justo, meu amigo: se Deus existe, existe pra todo mundo. Se o diabo existisse, ele também deveria existir pra todo mundo. Mas ainda penso que o diabo não existe.”
-“Óia...” – o boêmio idoso ficou ainda mais intrigado: primeiro o oferecimento do plano funesto...depois um sujeito (eu) negando a existência do diabo dele.
-“Thau, vou descer. Tudo de bom pro senhor, cuide-se.”
-“Thau, felicidades pra você.”

Saí da estação Colégio Militar sorrindo. Um jovem cego trabalhando pesado, vendedor de plano funerário. Um aposentado da CEF praticando a dialogicidade com a naturalidade de um cidadão socialmente civilizado. Saí dali com um pouco mais de fé no povo brasileiro. Um pouco mais de fé, nem em Deus nem no diabo...nem nos políticos nem na Justiça...nem nos planos de saúde nem na previdência social...nem nas concessões públicas muito menos na grande mídia...mas um pouco mais de fé na humanidade! ]



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