terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Crônica Cotidiana 2




Uma sexta-feira matinal genuinamente curitibana. Ela levava a filha pós-adolescente para a escola, movendo-se no trânsito dos automóveis como uma das células sanguíneas na grande circulação. No ponto morto do câmbio, aproveitou o tempo de sinaleiro que não existe em casa, tocando num assunto que lhe cobrava a intervenção maternal no sentido de orientar seu rebento, sobre o balanço dela na rede social:
- Quem era aquele sujeito que comentou sua postagem ontem?
- Não interessa! E vê se não me enche o saco de novo, porque ele é só meu amigo! Vê se não vai escrever pra ele aquelas besteiras como fez na outra vez.
- Mas filha, naquela ocasião era diferente, você tinha só 14 anos, o cara era de maior, quase 10 anos mais velho, a diferença nem era muita, mas você é que era muito nova.
- Ridículo, mãe! Já disse: não atrapalhe minha vida de novo! Vou ficar puta com você, que merda!
As palavras machucavam não apenas pelo conteúdo, mas principalmente pela rudez no tom de voz, carregada de rebeldia e insensatez, sobre uma causa deveras inexistente, sem motivo para tal consequência. Quando no celular, a menina sempre digitando em calmaria, ao contrário das fracassadas tentativas de diálogos interpessoais, quando no centro do lar. Um profundo gole de lamento, e as lágrimas da genitora ofendida pela própria cria misturaram-se às da chuva lá fora. Fez do seu rosto, um vidro dianteiro, das mãos um limpador de para-brisas. O silêncio habitou-se no meio do veículo que transportava indignações nos dois bancos da frente. Evitaram olhares, desviaram foco, permaneceram mudas na superfície do asfalto das coisas importantes. 
A mãe lembrou-se do próprio pai, e do que ele faria caso ela se dirigisse a ele desse modo. Pensou no mundo de hoje, se a sociedade caminha mesmo no sentido da evolução, como dizem os periódicos especializados. Ontem, era a juventude transviada, hoje a adolescência comeu um pedaço da infância e a juventude um maior ainda da adolescência, formando adultos deficitários, incompletos, desvirtuados. Quando baixinhos, foram precoce e literalmente jogados na arena romana do mundo sexista de competições, também por aquela loira regenerada que ainda tenta na justiça recuperar rolos de fitas pretéritas do tempo em que ela tirava leite de falo tição e poderoso. As fases da vida diminuindo seu tempo, pessoas fora do espaço etário, pedestres na rua, carros sobre as calçadas, argentinos cuspindo fogo, haitianos apátridas, chineses clandestinos do cartel pasteleiro central, brasileiros votando em Manhattan...
Dói mais saber que o sangue fervente diante do motor, é o mesmo que corre em suas avenidas vasculares de sentir. O ar condicionado tentava segurar cada lágrima caída na tez da pele da face, discretamente coberta pelos cabelos soltos de disfarçar tristeza, em vão. 
O indigente pedia na janela trocados para se alimentar de crack. A droga de vida tomou proporções inimagináveis. Ele, o pedinte, já não tinha mais futuro. O que seria do futuro da filha revoltada, ignorando já a essa altura da sua jornada uma simples conversa ao pé do rádio que tocava um prelúdio desconhecido criando uma artificiosa redoma de tranquilidade contra o caos externo da metrópole bastarda? Sim, a cidade não teve pais. O dependente químico perdeu-se de seus pais. E há gente que os despreza, como se não tivesse havido ontem.
Depois do almoço, ela foi para um shopping, adquirir um aparelho mais novo para tentar adicionar sua própria filha à sua vida, ou melhor, chamá-la à sua família, vínculo afetivo em comum. Uma espécie de resgate, ou feedback dos valores tão invertidos em prol da modernidade tardia. E quando novamente chover de dentro pelo caminho, que seja de alegria: um basta na acidez alheia do temporal da aculturação globalizante. Pois neste recém-nascido paradigma da comunicação, um dos maiores perigos é a obsolescência das relações humanas...
- Solicitação de amizade enviada. Aguarda sucesso...

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