terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Crônica Cotidiana 10


O sangue escorria da veia saliente para o tubo plástico pela agulha de baixo calibre nas mãos da gordinha ávida por colesteróis, seu fetiche. Escuro, denso, não nobre. A Técnica do laboratório de análises tinha horror a morcegos hematófilos. Mas despontava uma réstia de sorriso em sua comissura labial esquerda, como se ela fosse membro da mais pura linhagem genética do Conde. Carrascos medievais levavam produtividade em número de corpos para casa, ela levava em litros. Tempos hodiernos demais para analogias, o que vale é o cafezinho que vem depois. Enquanto isso, máquinas altamente especializadas vão processando informações sobe o rubro líquido da insistente sobrevida. Conta a ciência que a hemoglobina é um pigmento, penso se o amor também tem cor. Deve ser dourado. Pois reluz até do peito mais frio, tal qual sai do leito mais fundo do rio o metal mais nobre, este sim. A cabeça d’água agita o curso, a cabeça de humores orienta o corpo. A culpa da chuva, a razão da amada. Amar Madalena, gostar de Gustavo, sentir Cíntia, sonhar Sônia, querer Karina, desejar Desirée, tanta gente nesse mundo a correr na direção do próximo. A vida compreendida como uma autopista. Mas ela é de mão dupla, e tem pontos de ultrapassagem proibida. Curvas, pontes, túneis, semelhantes ao trajeto da grande circulação no organismo paciente. Deveria haver um exame para avaliar o grau de sentimento...elucubração? Delírio, alucinação? Não, apenas o empirismo debruçando-se sobe o etéreo humano. Jamais, impossível, inimaginável. Sim, o resultado em quatro dias por qualquer rede social. Somente aquilo que passa pelo sangue, estará categoricamente registrado no papel timbrado. Então, o amor não passa pela corrente sanguínea. Uma tomografia cerebral quem sabe...em vão. Ressonância toráxica, menos ainda. Onde fica essa coisa chamada amor então, como marcá-la ou isolá-la? Certo, ele não é mesmo clínico, portanto não é sinal. Seria subclínico, como um sintoma que só pudesse ser revelado em anamnese, entrevista dirigida, questionamento específico. Mas não seria exato, da boca pode sair tudo, inclusive mentiras, ilusão e algo do gênero, algo fora deste caso. O que fazer para medir tal emoção. Melhor é aquietar o imaginário. Contentar-se em poder senti-la reciprocamente, sem necessidade alguma em medir níveis de vibrações. Dois tubos cheios, o aparelho hematológico e o meu plasma. Eu quero mais do que isso. Mas a ciência não soube explicar até hoje, onde é que o amor se esconde dentro da gente. Então eu fechei o braço com o micropore, levantei e fui na direção do meu amanhã. Na hora do almoço, no centro da sala, eu descobri que o amor é algo que circula em minha órbita. O seu porta-retrato, a sua escova de dentes, o seu chinelo, as suas toalhas, a sua lingerie. Pequenas grandes coisas que não tem tamanho, perto da vontade que flui incessantemente em tê-la comigo, para o todo sempre. O amor tem cor, tem cheiro e tem sabor, todos indescritíveis. Mas há um sexto sentido, um sétimo céu, um oitavo passageiro avisando sobre as coisas da antimatéria. Mensurá-lo, seria reduzir, minimizar e desrespeitar um presente ofertado pela dona existência, a mãe do destino. Resta aguardar que a sua foto, a sua boca, seus pés e seu organismo deixem de ser elementos figurados nos espaços de saudades ao meu redor, para se tornarem definitivamente companhia. A companhia, não se encontra no sangue, ela apenas o faz circular. Porque o amor não está em lugar nenhum, ele apenas é...


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