Foi então ele perceber que falava muito. Sua voz escorria da boca feito gozo precoce, sempre fora de hora. De seus dedos jorravam palavras, todas fora do lugar. Gestos cegos, movimentos presos, contatos nulos, silêncio de habitar. Tudo que dele saía, perdia-se por entre ouvidos, mentes e indiferenças alheias. Uma fonte no deserto, onde ninguém passa, para quem fica sempre será oásis. E o frio queima, o sol queima, a chuva queima, todo clima fere como se dá com os pássaros novos. Resolveu colocar o coração na janela, que dava de frente para um muro, sobre um corredor onde só passava um animal doméstico. Sentou-se no sofá do sábado noturno, apagou a luz do abajur da sala feia. Um barulho cortou o instante mudo: um vaso quebrara por ali. Era o seu coração atirado do parapeito, transformado em cacos agudos sobre o cimento gélido da quase casamata. Correu para pegar um pano, mas quando chegou ali fora, não havia sangue naquele órgão: ele já estava morto. Por respeito, após juntá-lo, guardou-o numa caixa de isopor branco, da cor da paz que o conteúdo não teve. Sua psique assumiria as funções perdidas, como se um dia tivessem sido encontradas. Pronto, um homem sem sentir emoções, pela solução acidental da vida oca. O livro o desanimou, o filme encheu e a música esgotou seus vácuos de percepção. Precisava fazer algo humano. Pôs a caixa em cima do muro, para que a natureza de alguma forma artificial a transformasse em pó nalguma estrada distante. Qual o quê, morcegos não hematófilos devoraram aquela massa amorfa, restando a caixa vazia, com cheiro de amônia. Nostalgia romena, pairando sobre um pedaço do Brasil latente. Noite bizarra, sentidos figurados destorcidos, nem a lua apareceu. As estrelas que vieram antes, avisaram-na com propriedade, que não havia merecimento que justificasse um luar sobre aquele espaço. Tudo nublado, isso acontece sempre quando não descartamos o que há de podre em nós. Foi para o banho, higienizou a boca reta sob o chuveiro torto com cara de puteiro. Sentiu-se aliviado, pegou o violão e cantou uma canção romântica no escuro. Está lá o corpo estendido na cama. Um ventilador da Multiloja esforçava-se para gerar um vento novo sobe o límpido. A rigidez não cadavérica limitava-se ao membro. Nada fez, virou para o lado e decidiu fazer da sua vida, muito mais do que uma ficção folhetinesca. Era tempo de estio, entressafra de refletir, para colher realidades em lugar das fantasias, mais razão e menos loucura. Adeus palavras, deixem Curitiba contemplar satélites...
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