terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Crônica Cotidiana 8


OUTRO TAO DA FÍSICA

Ela por um bom tempo trouxera em suas costas, um pesado fardo de tradições ocidentais. Assim como todos, deveria em nome dos bons costumes, estudar, trabalhar e casar, preferencialmente nessa ordem. Mas a questão era que o seu pedaço de ocidente, era intertropical. Não bastasse isso, um coração geopoliticamente latino. Contradições tais que explicam muitas coisas que nem nos perguntamos, mas acontecem, com os que vivem ao redor das bissetrizes dessas coordenadas. Ensinaram-lhe – teoricamente, é claro – sobre uma coisa chamada amor, e que tudo na vida deveria girar em torno dele. Mas o que viria primeiro, o tal do amor ou a obediência às tradições? E se viessem juntos, como fazer? Ou então depois de tudo...gangorra, prioridades, equilíbrio...doce mistério, que com o passar das horas ia perdendo seu pH alcalino. Adélia foi autêntica: talvez fosse mesmo o amor o suporte de tudo; encarou as possibilidades de frente. Mas...seria o sexo uma ponte para o amor? Ou era o contrário? Chaves, como encontrá-las? Portas, onde estão? Vida empírica, ai vamos nós descobrir sabores, gostos e por que não paladares. Entregou sua delicada flor de lótus aos dezessete anos para Polaco, o mecânico da família, devido a um certo fetiche por graxa, mas ele queria mesmo era o seu botão. Voltou da primeira vez para casa com sangue nas coxas e manchas de dedos ásperos no pescoço vermelho, sinal de estupro não fosse voluntário. Dividiu-se entre a descoberta e o arrependimento, jamais haveria de ser assim, animalesco, rude, corporal. Um misto de ousadia, irresponsabilidade e vazios. Tinha de haver algo significante depois, além da recomposição do vestuário largado pelo chão sujo dos ambientes torpes de sentidos. Pôster de Sabrina nua na parede, corpo de Adélia seminu encostado na Rural do tio-avô de Polaco. E o desgraçado que nem era poeta, cuspia uma saliva amarela nicotínica para facilitar a decomposição do selo da bela moça ruiva. Ela prometera qualidade, mas encontrara tantos outros piores que ele ao longo de sua trajetória relacional. Ela buscava sentimentos, eles queriam apenas organismos. Ela procurava orgasmos prolongados, eles queriam imediatistas ejaculações. Ela sonhava companhia, eles prometiam o mundo antes do corpo, objeto de consumo largado entre paninhos de limpar gametas brancos também abandonados aos pés das latarias no chão da vida. O tempo passou, a mente fluiu e o coração enrijeceu. Aos 45 anos, Adélia compreendeu que amor e sexo, ou são uma coisa só ou são coisas independentes, não há pontes que liguem os dois. Ou eles estão do mesmo lado do rio, ou permanecerão incomunicáveis. Infelizmente, muitas relações são assim, na base de tentativas de mergulhar até aproximar os opostos. Ilusão, meros seres se achando semi-deuses ousando unir continentes sem ter capacidade nem competência para provocar cataclismos suficientes para. Tanta gente se afoga na travessia, alguns até se machucam. E outros jamais voltarão à terra firme, perdem-se na marola das inseguranças e das conveniências. Entre carmas e destinos, ela concluiu utopia. Sim, enfim desistiu da busca frenética. Foi quando estava no estacionamento da sua segunda faculdade conversando com um colega, em pleno discurso (mas contraditório com a sua real pauta de valores e ainda influenciada pela pós-modernidade tardia) de que gostava “de homens com pegada, que as mulheres não precisam de palavras e sim de atitude”. Ouviu da boca dele, algo filosófico: “pegadas, são sinais típicos de animais. animais, estabelecem entre si relações específicas de predador e presa. não deu certo uma emboscada, partem para outra na próxima colina, esquina ou estacionamento. ademais, experimente (con)viver com alguém sem palavras, mudo de emoções: assim verá bem além da sua pele até onde o silêncio será capaz de conduzi-los...”. Pronto, não precisava mais nada. Sua roupagem felina desmoronou-se, desnudando-a por completo naquela noite, ali no pátio dos carros, os quais têm cada um a sua oficina de eleição. Mundo ininterrupto de escolhas. De opções, decisões, caminhos. Num gesto simbólico, cruzou os dedos à frente do ventre e abandonou sobre o cimento a submissão ao mundo masculino, ao modus machista, linear, mecanicista, expansivo, competitivo, agressivo, racional ou yang demais para promover companheirismo na condução de relacionamentos. Encheu o peito de liberdade e partiu para a próxima manhã, quem sabe mais intuitiva, receptiva, cooperativa e consolidadora. Encerrada a temporada de caça, a floresta é morta, o fardo também. Era a vez daquele seu ideal humanista, então sua porção alquímica deveria transformar tal utopia em realidade, mas agora ao som da natureza das coisas. Dali cinco meses, ela viu perto do bondinho das Flores, sob uma tempestade, um homem ajudar uma mulher cega a atravessar a congestionada Ébano Pereira por entre os carros parados. Ele derrubou um objeto qualquer na calçada, Adélia foi devolvê-lo. O tempo e a chuva, o espaço e o bonde, a cegueira e o gesto, outro gesto e o destino: a força da natureza. Conheceram-se. Silas não era polaco...


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