terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Crônica Cotidiana 9


O INTERVALO
O intervalo. Espaço não ecumênico, nem ateu ou neutro. Não é a fé nalguma coisa inventada que deve mover-nos à criação de vácuos intertemporais nas mais diversas questões da vidinha resistentemente urbana. Intervalo para raciocinar, refletir, aprofundar e respirar até encontrar verdades. A vontade, como toda vontade, deve partir de dentro. Coisas que não vêm de lá, pois lá é muito longe daqui. Embora isso, a crença no superior, sirva para manter a latência cívica de cada concidadão que aguarda pacientemente por dias melhores à margem de sua própria existência. Há um rio na porta de casa, chamado rua, mas não mergulhamos na mão certa ou sentido. Dentro das casas, caixas, caixotes e caixinhas com tecnologia de ponta, em forma de quadrados e retângulos de luz elétrica, roubam a voz do cotidiano e ditam a cartilha do devir, sempre verticalizando a verdade, numa ciranda trigonométrica de figuras, conceitos e modelos artificiosos a povoar a ideia dos eternos e passivos espectadores sem perspectivas. O povo inteiro com as respostas no peito, a força nos braços, mas alienado de atitudes, mente dirigida. Dizem que não há campo, não há espaço, não tem estrutura nem vez, amedrontando o presente que antecipa um sombrio amanhã. Discurso, establishment, estagnação social através do controle ideológico: dependência, falta de autonomia, submissão. Tudo por causa da incapacidade de se estabelecer intervalos, denominada discernimento. Imaginar um país onde a população fosse desde cedo educada a discernir a vida, é prospectar uma nação emancipada. Uma nação emancipada, não se constrói com governos pseudodemocráticos nem políticos profissionais, legisladores de causa própria ou judiciário de casta própria. “Mas é assim que eu sei te amar”, dizia outra música típica de dor de cotovelo, tal qual é a relação das pessoas com dor na consciência com os seus governantes & autoridades: passividade explícita, conservadorismo impudico. Não temos condições de separar ações de omissões, ética de corrupção, necessidades de interesses (leia-se politização). Professor Aquino era um cara bonzinho. Tratava seus desamores com educação, dedicação e benesses. Confiável, ele não revelava insegurança alguma a quem quer que fosse, sabia transmitir sentimentos, mesmo que equilibradamente. Fã de ACDC, Blindagem e Lenine, ele devorava livros de Dostoiévski, Sociologia e Filosofia. Em sua prateleira exemplares de Maiakovski, Ferreira Gullar e Asterix. DVDs cult-movies, televisão analógica e feia. Professor universitário com dedicação exclusiva, o pós-doutorado lhe garantia salário de dois dígitos. Bem apessoado, o quarentão era bom partido para toda aquela que gostasse de conviver bem, mas à moda antiga, pois amar hoje parece ser antigo. Mas ele era honesto, não fazia mistérios nem trazia dúvidas. Suas mulheres não souberam amá-lo, pois elas queriam sofrer, nem que fosse um pouco, de alguma forma, já que toda forma de violência é moda contemporânea. Ele, vítima do contexto despolitizado da sociedade que o integrava como gota no oceano. Por isso, recebia chifres, galhos, guampas dignas de empalhamento artesanal, bucolismo ectópico. Não aprendera na escola da vida, a separar índoles, intenções ou interesses de mulheres ao seu redor. A rejeição, a traição e a masturbação formavam o tripé manco que não sustentava sua esperança em uma companhia verdadeira. Helena saía nas manhãs com o filho do vizinho de baixo para o matagal do Jockey; depois veio Regina que fugia com o cara do gás a sacudir caminhõezinhos de entrega. Mais tarde Zenilda teve um filho com o Pediatra e finalmente, para encerrar, descobriu que Ana Paula chupava seu melhor amigo onde houvesse vaga para estacionar. Todas, desprezaram a cortesia e cuspiram na cumplicidade, elas queriam era rosetar. Até chegar o dia em que ele perguntou-se onde estava a justiça dos homens. Nos tribunais, sabido era que não. Nos céus, menos ainda. Nas instituições sociais, no trabalho? Difícil.. Então ele encarnou uma diarista radical e pôs fim a tudo dentro de sua casa que lembrasse ou significasse o passado. Tudo, mas tudo mesmo foi para o lixo não reciclável. Lívido, leve, livre enfim. Agora, a vida seria outra. Mas infelizmente era tarde demais, décadas se foram. Seu carro foi colhido pelo Pinhais-Guadalupe quando tentava entrar na rua que contornava para o Frischmann-Aisengart, ao cruzar a nova faixa exclusiva para os ônibus no Alto da XV, coisas da urbanização tardia e irresponsavelmente 'planejada'. Pois é difícil separar ônibus e automóveis, assim como é difícil encontrar justiça em algum lugar. O resultado que ficou para sempre no balcão do laboratório era um positivo para PSA, neoplasia de próstata. Câncer, uma doença multifatorial onde o oncogene recebe ingênua e desinformadamente visitas das mais diversas ordens para se manifestar. Ele sempre somatizou seus reveses – o clássico fator cocancerígeno externo (externo mesmo?) – nada falava ou reclamava, vivia sobrevivendo aos insucessos afetivos, acumulando frustrações. Não teve discernimento suficiente para promover o autocuidado de sua saúde mental e emocional. Trabalhou muito, amou quase nada, tendo em vista a não reciprocidade geral de seus relacionamentos. Morreu antes de sua morte. Ao menos, não testemunhou seu arrependimento. Solidão retilínea e uniforme, continuamente sem intervalos de conscientização. Ele podia ter saído da casinha, falado mais, convivido mais, viajado mais, conhecido mais. Errado mais, bebido mais, experimentado mais. Ele poderia ter sido amado ao menos uma vez. Quem sabe Adriana, a enfermeira do hospital em que ele iniciaria o tratamento da doença, o acompanhasse afetuosa e dignamente até o fim. Não deu. Nós temos a foice do nosso próprio destino. Brincar com ela nas mãos, é a verdadeira heresia.


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