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Pseudocrônica de um solteiro por opção -
Quântica.
Uma vida não infinitamente divisível. Recorri à Física para tentar compreender
o que é viver assim, sem amar ou ser amado. Não como consolo nem justificativa,
apenas para saber a ciência do por que, faço jus sem curiosidade alguma, posto
que sou eu. Então eu pude ‘de temps en
temps’ (como diria a também aspirante ao domínio da língua francesa, a
saudosa colega Sandra) dividir a minha vida até aqui, em pequenos amores, corretamente
chamados de sentimentos; e não seriam para sempre, já que a essência do amor
tem natureza de eternidade. Solução de continuidade foi rotina em meu tempo de
afetos. Hoje, escolado, sei como é; agora, longa fase de remissão. Posso então observar meu espaço com mais
propriedade. Disso, concluo coisas tão simples quanto os motivos que levam as
folhas a cair das árvores.
Começarei
pelo tempo: quando é que reparamos que estamos sem um grande amor. A semana,
tem períodos clássicos, horas tradicionais, momentos costumeiros em que se pode
reconhecer tal fato, juntamente com suas imediatas consequências, sensações que
não advém de uma causa e sim de um fato. Deixarei de fora o sábado à noite,
sabedoria popular.
Trago
de início o exemplo do despertar. O som do despertador pede o abraço vazio,
ninguém ao lado para a saudação do bom dia. Aquele acordar lânguido,
preguiçoso, acalorado, toque horizontal dos corpos chamando a bissetriz das almas coordenadas, por vezes excitado, simplesmente inexiste.
Verticalizar, arrumar a cama e
ir para o banho. Nele, a água quente de um calor que não virá. Anunciação da
neutralidade diária que se aproxima. Na pia, uma só escova de dentes, sempre renovada e
resistente à ação mecânica do atrito com o cotidiano. Xampu do gênero, ausência de condicionadores,
cremes e tais. Banheiro com cheiro de homem.
A
hora do desjejum. Silêncio no meio, desnecessidade de ligar a TV, mesa não
posta, café Pelé em pé. Cães alegram-se na primeira e única refeição do
dia. Quarto arrumado, roupa limpa, perfume, o trabalho,
carro vazio, músicas placebo. Carro com sinal de homem.
Almoço.
Talvez a mais significativa. As pessoas se aglomeram em pares, trios, grupos
falantes nos restaurantes, difícil para um trabalhador autônomo, itinerante e
nômade por natureza, encontrar mesa para somente dois lugares, sabendo que um
estará vazio. Pois quanto maior a mesa, maior o estereótipo, timidez em ação. Começa
a dança dos olhos sem anteparo, nem música de palavras, ausência de colóquios,
engolidas a seco pelo céu nublado da boca que não chove letras. Demonstração de
força, independência, autonomia relacional. Peito aberto, sobre a mesa com jeito de homem.
A
volta para casa. À tardinha, os mesmos cães pulam ao redor do sempre vazio em meu lado. Entro na
casa quieta, mudez dominante. Não há janta, lanche ou refeição qualquer. Uma
vitamina quase instantânea substitui reencontros, mimos, paparicos. Violão no sofá, acompanhando visualmente o
noticiário inaudível para não atrapalhar a procura das notas daquela música que
veio na lembrança. O teclado como abraço, o Word feito colo. Ambiente com aparência de nada.
Por
fim, o repouso. Cama enorme, supérflua em tamanho, carente de corpos a cama, não eu.
Quatro travesseiros símbolos de meus exageros, hospitalidade inútil. Meia-luz,
meio-livro, vigília integral. Reflexões madrugais, notívagas de programar
amanhãs de solidão voluntária. Um sono leve, sem sonhos possíveis, corta a
noite cheia de estrelas conduzidas pela lua abusada de brilhar: há luz sobre
minha vida, eu sei disso. Cama com cara de espaço.
Quatro,
são os momentos que não me avisam que não vivo um grande amor. Não preciso ser
avisado, porque não há algo a ser feito, um caminho a seguir, um telefonema a
fazer, uma mensagem qualquer, uma procura, uma ação, absolutamente nada
artificioso, forçado ou intencional tem vez em minha conduta individual. Ao
contrário, é justamente nessas horas em que eu me sinto mais forte, como um
reflexo involuntário de contrair músculos preparando o organismo para períodos
de ausência. Não há tristeza nem melancolia, há apenas o vácuo, um silêncio
celeste rompido pela música dos astros, sucumbido pela força dos textos no
computador. Um parêntese: entre amigos, parentes e pessoas, considero outra
dimensão, não cabendo lugar para as coisas de companhia, que garanto-me sozinho,
nem me passa pela cabeça olhar ou até mesmo pensar para o meu lado, explicitamente vácuo.
E
encerro esta falsa crônica, com o espaço. Não há espaço ao meu lado. Blindagem
afetiva, couraça sentimental, frieza cerebral. Hormônios desenvoltos a ponto de
fazer do discernimento, a virtude maior. Não há mais nada a falar de espaços. Pois todos os locais são iguais, inespecíficos, fugindo assim ao tema proposto.
Enquanto
houver corpo, que se satisfaçam suas necessidades básicas e instintivas, tão
rápido quanto merecerem. Isto não impede conhecer outras pessoas, outros
mundos, outros sentidos e por que não conhecer outros corpos. Aliás, ainda é
fundamental viajar pelo universo humano. Sem a intenção de encontrar alguém,
não preciso de combustíveis, de rotas, de suprimentos como nas viagens
convencionais, não há destino. O que existe é uma coisa chamada liberdade. Seu
preço pode ser caríssimo, mas o prazer de não correr os riscos que as relações
afetivas trazem mascaradas no bagageiro, inevitavelmente por vezes conflitantes, é quase inenarrável. O prazer de
conversar com quem eu quiser e vice-versa. Igualmente de sair, entrar, copular ou não, apenas ronronar, espreguiçar, essas coisas tipicamente felinas. O prazer também
de pegar um livro, do começo ao fim. De escutar uma música sem interrupções. De
assistir um filme e dormir no meio. De pegar o carro e não precisar voltar. De
viajar sem ter ponto de partida. De transcender sem ter hora de chegada. É para
isto que temos espíritos: para não nos prendermos nas vicissitudes dos nossos organismos.
Uma
liberdade que permite compreender, que realmente não existe aquilo que chamam
de “grande amor”. O que existe, são convenções, invenções e ilusões, todos
frutos da árvore da paixão, aquilo que eu repito e denomino como “sentimentos”. Por terem
natureza de frutos, um dia amadurecem. Noutro, apodrecem e caem. Por ação
daquele vento que faz cair as folhas das árvores, pelo mesmo ar que respiramos,
ou por tentarmos respirar. O reino vegetal só pode servir de alimento para o
reino animal no sentido orgânico, jamais emocional. Não fazemos fotossíntese,
trabalhamos só com oxigênio, precisamos respirar bem para viver melhor. Há quem
se submeta a entregar um de seus átomos de oxigênio para um/a companheiro/a. Mas
isso não é necessariamente ter um grande amor: ou é daqueles frutos, ou é
simplesmente amor, sem adjetivos para qualificá-lo, identificá-lo ou mesmo
reanimá-lo. Este amor, á para pessoas simples, explicada sua raridade. Fui complexo demais com minhas pseudo-companhias. Só por ter desenvolvido o dom de ser Poeta. Concordo tanto com uma delas, que adotei como cântico: "tem sangue eterno a asa ritmada e amanhã estarei mudo, mais nada.". Amanhã mudo, hoje tão livre. Coitado de quem não escreve, é mudo duplamente em sua própria história...
"O poeta não é feliz
Fosse feliz não seria poeta
Seria apenas um entregador de flores
De uns para outros
Sem passar pelo seu jardim de ilusões..
Mas não é a ilusão que alimenta o poeta
Ele
apenas sorve a realidade do impossível."
- Marin Chêne -
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