A ÚLTIMA VIAGEM
Pronto,
finalmente cheguei ao fundo. Sem cordas nem lanternas, apetrechos de escaladas.
Vim tropeçando nas manhãs, escorregando pelas tardes, caindo nas noites, usando
o tempo como apoio, chão. Não alcancei espaços nesta intentada, não houve onde
eu quisesse e que só por isso pudesse chegar. Aqui é ermo, prevalece a
escuridão, sem flora nem fauna a olho nu. Mundo subterrâneo, similar morada em caverna, horizontalizada como as grutas labirínticas do Nepal. Caminho
por dentro, as coisas mantém certa distância entre si, nada é perto. Há alguns
móveis na penumbra, vejo em silhuetas lilases de vapor. Achei uma estante, onde
apanho um livro que abro e dele sai uma réstia de luz em direção ao meu rosto
de pós. Cansado, sentei-me na cadeira ao lado. O livro contava dois anos de
histórias na Armada, belas fotos, tempo feliz que não sabia, queria mais.
Já conhecia aquela obra. Troquei, peguei um mais antigo, sobre o tempo em que
eu tinha dezessete anos de sonhos possíveis. Outro, falava da clássica noite de
natal onde eu questionei estrelas num céu enluarado de vestir minhas até então sete
primaveras. Meu passado, ali todo guardado, sustentado por prateleiras de
imbuia protegido com portinholas de vidro jateado. Deixei histórias, andei um pouco mais. Na parede, um pôster
dos meus pais. Num aparador, porta-retratos dos meus avós. Em cima de uma mesa,
espalhadas fotos de alguns amigos. Os locais de trabalho, todos minuciosamente descritos
numa pasta ao lado de um álbum dos meus cães, ambos sobre a cômoda. Havia também um cofre, onde estavam representadas minhas filhas. Não vivi pouco. Sobrevivi
demais, eu concluiria. Foi bom relembrar, mas tenho de ir adiante. Um pátio
enorme, povoado de figuras de colegas de convivência. Salas confortáveis, imagens agora dos melhores amigos dispostos ao longo dos sofás. No auditório, outros poucos parentes, junto com os apenas conhecidos. Alguns quartos,
vazios, talvez tenham habitado meus amores. Próximo, um lago repleto escondia meus sentimentos por mulheres que não vingaram. Continuo. No meio do trajeto, um quadro
onde se lê algumas virtudes particulares. Ando um pouco mais, agora na direção
de um ruído. Encontro alguém murmurando escondido em posição de lótus sob um lençol
vermelho e preto. Sem medo algum, ergo o véu e vejo que sou eu mesmo; então me pergunto o que
faço ali. Essa parte de mim diz que é o que eu ainda não fui, e preciso
urgentemente libertar-me para ser. Não posso mais aguardar coisas externas,
necessito tomar atitude como missão. Peço-me desculpas, dizendo que
providenciarei assim que possível. Respirei fundo, olhei tudo em volta como
quem vai se mudar para sempre de um determinado lugar familiar, habitual, costumeiro, confortável mas sobretudo conservador. Na volta,
sentada numa poltrona, avistei ela, símbolo de todos os meus desamores. Cheguei e parei em sua frente. Não me olhou
nos olhos, virou o rosto e emudeceu. Não me demorei, já sabia. Parti, ela não olhou para trás. Um desamor
que eu deixei, ainda está por aqui. Eu poderia voltar e avisar para ela entrar
num quarto, mas não seguiria meu conselho. Pois de um quarto, ela alcançaria
facilmente algum riacho em galeria que a conduzisse para o passado de esquecimentos. As lembranças, permitidas, estão
todas aqui. Mas ela não quis ficar. Não podemos nos permitir ter saudade de quem se negou veementemente a fazer parte de nossa história. Hesitei em estender-lhe a mão e orientá-la
para o lugar certo. Não o fiz. Peguei papel e caneta, meus instrumentos diários
incapazes de tocar seu coração naqueles meses, e deixei uma anotação. Escrevi que,
quando eu morrer, que dela não escape uma só lágrima. Porque as lágrimas são
compatíveis somente com o que foi (con)vivido. Aquilo que não aconteceu, merece
então dois sorrisos. Um pelo respeito por ter gostado verdadeira e
orgulhosamente dela. Outro, como um aceno do trem em movimento, para mim ciente em
terra de jamais. O desamor liberta, a morte emancipará. Mas isso só ocorrerá
depois que eu voltar de onde estive, de dentro de mim mesmo. Ela, em breve, não
estará mais ali. Mas quem é ela, já não reconheço mais. Termino de atravessar a tal “fronteira mais escura”, revendo e
analisando a vida que ficou em mim. Não couberam neste espaço os meus erros,
omissões, desambições, hesitações, frustrações e coisas do gênero, por estarem
todos trancafiados em tonéis de carvalho, localizados bem longe num ponto não equidistante entre o passado e o nada, mais perto deste. Não bebo vinho, não fiz do tanino o
meu néctar. Trabalho apenas com essências, percepções sensoriais aromáticas, de
características voláteis, consistência gasosa, natureza fluídica. Assim foi o
meu amor. Conferi o cadeado, tirei o pó e vim embora. Passei a ser como a Lua.
Agora, é rumo ao imaginável, ou seja, é somente o lado não escuro que me interessa...
pensando:
"Acho
que eu vim por outra saída: estou escutando o mar!"
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