Diametralmente oposta a qualquer ordenamento jurídico, DESUNIÃO ESTÁVEL é uma imaginária relação multiafetiva ousada entre a Poesia e a Música. Como esses valores estão em declínio nos dias pós-modernos, decidi promover impulsos de acasalamento sentimental entre ambas, com a substancialidade e a emoção que brota dessas duas formas de expressividade dos sujeitos na sociedade civil, ou seja, nascentes da natureza humana. Aos amantes, as cortesias da Casa.
segunda-feira, 30 de maio de 2016
Mais Um..
Dizem
que é para comemorar em reunião mais um ano de vida. A coisa retroage: o ano já
se passou e assim se conseguiu completar mais um determinado tempo. Comemora-se
o quê, então? As vitórias? As conquistas e as ascensões? E se não houve nada
disso, o que comemorar? A neutralidade, a estagnação e as mesmices da humanidade são dignas de
festança? E se foi um ano de baixas, de perdas e derrotas? Ah, mas comemore-se
o que se venceu, mesmo que seja em menor quantidade do que aquilo que se
perdeu, o que importa é chegar até aqui, vivo. Aqui aonde? Vivo de que jeito?
Basta respirar? Tradições centenárias pra não dizer seculares necessitam serem
revistas. Penso que o aniversário merece outro tipo de celebração. Não havia
muita gente na sala do hospital na hora do nascimento. Eles vieram depois. E
outros não ficaram. E outros partiram ao longo dos anos. A outra sala hoje estará com pouca
gente. Ele queria é estar bem longe daqui. Desse frio, da sala pequena, das
comidas sobre a mesa. Um estrogonofe, um bolo sem velas e uma cantoria, já não
fazem mais sentido. Nada mudarão. Quando o caminho é a introspecção, requer-se
o isolamento, mesmo que seja monofásico. Tudo isso é adereço, perfume, embrulho,
encadernação de um livro apenas escrito. Quando a gente elege coisas mais
importantes na vida, as outras coisas importantes deixam de ser, e passam a
integrar o rol das superfluidades. Ao mesmo tempo, ele ainda não descobriu o
caminho que levasse até a data certa, na profundidade certa e bem medida das
coisas, sem exageros nem obrigações. Ele não queria ir nessa festinha. Ele já
não gosta de comemorar tradições. Ele não quer comemorar o passado. Ele nem
sabe acabar esse texto. É que ele ainda não aprendeu a comemorar o amanhã...
Soneto de aniversário
Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.
Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.
Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.
E eu te direi: amiga minha, esquece...
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.
Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.
Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.
Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.
E eu te direi: amiga minha, esquece...
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.
- Vinícius de Moraes
Sessão L'Archipel
- elas são muitas. mas na história de cada um, existe uma principal. de tal maneira, que se considera incomparável, as outras são as outras e só. escrevo sobre as Sandras. ou melhor, sobre uma só. a Sandra da minha história.
De Temps En Temps
/Era uma vez...desde cedo,
sentada na turma do outro lado daquela sala na Aliança, seu olhar tímido não
escondia o sorriso. Morena, brasileiríssima demais. Não chegava a parar o
trânsito, só porque era discreta. Nas roupas, na postura, no comportamento. E também
nos sorrisos, não eram para todos. Uma pessoa reservada, digna de conhecê-la
para saber mais. Mais do mundo.
Ela, La
Blonde, Vanessa e ele formaram um grupinho legal naquele semestre. Ultrapassaram
as fronteiras do liceu francês ali da Prudente de Moraes. Alguns aniversários,
bares, casamentos. La Blonde, apaixonada por Marcelo, dali também. Vanessa,
carregando seus cinco fãs a tiracolo, e muitas dúvidas sobre qual deveria
escolher, perguntava o absurdo, amava ninguém e vice-versa. Ele, sempre
sozinho por naturalidade, fazia curso integral que só lhe disponibilizava à noite.
Sandra,
estava noiva na época. Ele não sabia se os olhares que desviavam nas paredes da
sala quando ele a fitava, era por isso, pelo noivado e as suas regras. Mas a
aproximação foi inevitável. Tinha aquele algo a ver, e não era raso. A coisa que marcou foram as risadas dela, na
presença das brincadeiras dele. Uma segunda, impublicável.
A noite, a
cama e a relação conturbada. Pudera, a insegurança dela tinha conteúdo, motivação, fundamento. Ele respeitou,
afinal, chegara depois do outro.
E assim se
lançaram no tempo. Intervalos enormes caíam por terra quando se reencontravam. Na
praia, ela sem pudores, quase livre. Mas um quase que praticamente se
eternizou. E ele sempre respeitando.
Dia desses, ele
resolveu voltar em algum lugar do passado. Não houve explicação para ter feito
isso. Chegou lá, o porteiro disse que ela havia se mudado há alguns meses,
junto com um sujeito. Presumiu relação. Lamentou o atraso. Não desistiu, foi
atrás até que conseguiu.
A ligação e a
mesma risada. Outras brincadeiras ele trouxe, para novos sorrisos. Ela contou
muito, do seu momento, de sua escolha, vivia agora reservadamente em tempo e espaço, e gentes. Combinaram
algum encontro, não deu certo. Provavelmente, o receio
dela voltou à tona, mesmo tendo ele lhe assegurado da ausência de intenções. Não era pra medo, ele
só queria revê-la.
Mas os tempos mudaram muito e com isso as pessoas também. Hoje, todo mundo acha que ninguém mais faz algo sem querer alguma outra coisa em troca, pode ser o que for. É uma pena. Isso afasta a própria condição humana, remetendo os seres a um habitat essencialmente animalesco, selvagem, capital. Inóspito para confraternização, amizades e coisas afins. Quem dirá, para simples ou importantes reencontros.
Mas os tempos mudaram muito e com isso as pessoas também. Hoje, todo mundo acha que ninguém mais faz algo sem querer alguma outra coisa em troca, pode ser o que for. É uma pena. Isso afasta a própria condição humana, remetendo os seres a um habitat essencialmente animalesco, selvagem, capital. Inóspito para confraternização, amizades e coisas afins. Quem dirá, para simples ou importantes reencontros.
O passado, cada vez mais se torna, mais do que um livro, um verdadeiro espaço deste livro na estante, não sendo de bom alvitre demorar-se com ele, o livro, fora do lugar. Poeira do pretérito, é o que chamam e generalizam, no caso do livro ser aberto, e colocado novamente em cima da mesa, novamente dentro da pasta, novamente dentro do peito. Por mais que isto traga boas lembranças. E por mais que aquele tempo não tenha sido vivido direito, ou adequadamente, sem importar as razões. Pois foi um tempo, acompanhado de espaços proibidos.
Nos dia de hoje, revisitar parece ofensivo. Tão apertados estão os livros na biblioteca, periga cair a estante, a casa, o mundo, o próprio tempo.
Nos dia de hoje, revisitar parece ofensivo. Tão apertados estão os livros na biblioteca, periga cair a estante, a casa, o mundo, o próprio tempo.
E de tempos em
tempos, chega um dia em que o espaço acaba. Mas naquela sala, a memória dos
bons momentos jamais se apagará. L’archipel ficou distante, continuamos a boiar
no mar das relações interrompidas pela modernidade./
Não houve
aliança.
Ela, teve o
seu motivo para não ter vindo
Ele também, por ter voltado..
Tantas ilhas
naquele arquipélago,
Que ambos,
perderam-se entre os arrecifes.
O continente,
era logo ali...
"De Temps En Temps" - Grégory Lemarchal
domingo, 29 de maio de 2016
Distopia de Um Só Homem
Ela
está se aproximando. A grande explosão. Um estrondo, junto com sua enorme
destruição. Há tempos orbita no céu, aguardando a hora certa para despencar
sobre aqui. Ou esconde-se no centro da Terra, esperando emergir. Virá, que eu
sei, em forma de acidente, e como todo acidente, será um fruto negligente. O
fogo, a inundação, o vendaval ou o desmoronamento chegarão depois, após o impacto. Não significará um cataclismo, pois recairá apenas sobre mim. Quando
a tragédia é individual, não entra para a história dos homens, isto requer
quantidade. Explicar minha parte culposa nesse evento, não é missão, mas é
impossível. O quê eu teria feito, quando, aonde, como, por que, para quem...não
há resposta, fui praticante do bem. Nada fiz de mal para os outros, até ajudei muita gente. Vai ver que
o bem que fiz para mim mesmo, justificaria o fim das coisas à maneira de uma única e solene explosão.
Mais um paradoxo para minha lista de Schindler, onde constam ainda coincidências,
desencontros, indiferenças, silêncios e metades. Uma lista que não é de papel, pois nele guardo outras coisas; como o desamor e os meus pontos-e-vírgulas, por
exemplo. Mas se a explosão é das coisas, obviamente o papel também será atingido. Pressentimento,
anunciação, o final já começou. Serão pouquíssimos segundos para escutá-la,
antes daquela turba de elementos da natureza tomar conta do meu redor. E tem
gente que diz que “a idade vai chegando”. Na verdade, ela está é indo. A idade
vai-se indo como caminha a labareda num pavio: no fim, a bomba. Nada apaguei,
fiquei aqui bem longe. Aqui no conforto de minha consciência, aquecido com as mantas de minha poesia, embalando-me ao som da música universal. Aqui, refrescado pela brisa daquilo que me inspira, na alegre companhia de minha solidão, sentindo o doce perfume de todas as minhas verdades. Aqui, no meu canto, o único lugar onde eu consigo compreender ou dimensionar o que aqueles homens um dia chamaram de virtú...
quarta-feira, 25 de maio de 2016
Lendas Urbanas
João e a Mão de Arroz
O correio continua arisco. Ele
transformou-se, cresceu e invadiu até as casamatas, até os eremitas. É a
hodierna comunicação entre os humanos revelando inclusive as características
impróprias da espécie. Peculiaridades, particularidades, intimidades e tantas
outras ‘dades’. Menos 'tudes', e bem mais 'oses' e 'ites'. Ação e omissão em matrimônio perfeito, sem prejuízo do
equilíbrio, este não se faz necessário. O mundo ao alcance dos dedos. Mas não é
o mundo aí de fora, é outro mundo. Mas também não é o mundo de dentro. Digamos
que é um mundo...trigonométrico, isso. Um mundo aonde figuras imaginárias vão
ganhando formas de acordo com os traços elaborados pelo pensamento. Sem nenhum compasso, nenhum esquadro, apenas à mão "livre". Pior, vão
sequestrando até os conteúdos de outras coisas reais, inclusive de sentimentos. Por isso,
a invasão. Comunicadores, os atores sociais despontam no firmamento estelar
deste mundo, emitindo a luz que bem entendem, natural ou artificiosamente elaborada
em (des)favor das suas conveniências - palavrinha tosca essa, emprestaram até
para lojículas em postos de combustíveis. Pode tudo, tudo vale, não há limites.
Não há princípios, valores, virtudes. Se a terra é de ninguém, invadamos todos.
Lei? Muito embrionária ainda. Embriões não são nem imaginados às vezes. João apenas
gostava de Maria que pensava que o amava. Mas ele conheceu Ana, a qual sucumbiu
às difamações de Maria. Então sozinho, ele nem chegou a conhecer Miriam, que
por sua vez foi convencida pelas injúrias de Mônica, que andou um pouco com
João mas amava Pedro. A ex de João, também mentira para fulana que caluniou
João para Mônica. Sim, um carrossel anguloso de fofocas não presenciais, cuja virtualidade
ganha contornos falsos de facticidade, pelos tais desenhos geométricos traçados em linhas tortas sobre papel crepon. Um desfile de crimes contra a honra, os
quais, uma vez ajuizados, perder-se-iam no tempo vindouro, outrora mal
aproveitado dessas relações carentes de presença. O quê? Presença? Aquela coisa de entreolhares, expressões faciais, trejeitos, sensações, perfumes, toques, cafunés e belezas? kkk, isso é supérfluo, jacu e engorda. Estamos no século XXI meu nego, onde os juízos de valor se formam em velocidades de 10 a 25 mega(bits): tecnologia para auxílio da consciência, é o discurso. Tato na tecla, olho na tela, voz na escrita e o resto é dado processado. Deixa que eu acho quem ache algo de ti, que eu te direi quem és. Mundo bizarro, programas de auditório foram alocados para o cotidiano real, portanto surreal. Historinha típica
para exemplificar a clássica pergunta que se responde por exclusão: “de onde
vem o amor?”. Sabe-se, experimental ou cientificamente, que das confabulações entre
os sujeitos é que não, muito pelo contrário: isso destrói. Então, pensando num final feliz, João abdicou de vez de
uma coisa chamada companhia. Pois quem acredita em terceiros, ignora por
completo não apenas a possibilidade de ter alguém (e sem se preocupar com a
nomenclatura do relacionamento), mas ignora principalmente a chance de viver um
grande amor, mesmo que isso não seja obrigatório. Assim, fazendo da liberdade da
comunicação moderninha um exercício de irresponsabilidades, inconsequências e
injustiças, as pessoas se apequenam, impossibilitando caber nelas tal
sentimento. Quando vem, é igualmente proporcional ao dano causado ao próximo; que pena, são coisas da Física. Todavia, seja a pequenez diretamente proporcional à
frustração. João não admite ter que desmentir boatos e/ou absurdos para aqueles que
não possuem a capacidade de identificar a veracidade do mundo, subjugando-a aos seus interesses ou vontades ou caprichos ou maldades. Quando se chega
ao ponto de ter que convencer alguém sobre uma ou mais verdades, é porque este
alguém é propenso à falsidade: segura na mão de quem quiser, e vai! João não é
professor, nem aluno, nem guru, nem guri. Terapeuta, João jamais seria. João
também não sonha um grande amor. Mais do que ficar se afundando em maledicências
internéticas na vida dos outros, ele pensa que as pessoas tinham que ocupar seu tempo com
algo eticamente construtivo na própria vida. Mais do que parboilizados, os sentimentos deveriam ser integrais. Assim como azeite de oliva e cebola, são fundamentais; mas só para quem se habilita, é claro. João rima muito bem e tão bonitinho
com solidão. João não tem mais tamanho, porque não é mais mensurável. Portanto,
ele não cabe em coração algum...
terça-feira, 24 de maio de 2016
Contos 3/4
Via Dupla
Ele tinha perdido (quase) tudo na vida. Tavares fazia jus ao seu apelido. Outro Pinduca. Todos os dias, toda manhã, na bebida buscava esquecer, que estava vivo. Não havia rota de fuga, mas o álcool era o seu veículo de transporte. Partia sempre para algum lugar que não era ali, bem longe da sua realidade. Abandonado pelo núcleo familiar, foi terminar de destruir seu aparelho digestório com a mãe. Mães são seres que acolhem até os piores tipos de filhos. Sempre estão a espera, de uma visita, de um telefonema, de uma lembrança, com uma refeição ou de um mínimo que justificasse ao menos os nove meses de gestação, sem falar na criação da criatura. Mas existem filhos que não existem. Ou melhor, existem filhos que, para eles, as mães deixaram de existir, dada a natureza descartável que atribuíram a elas no tempo. A ingratidão é pouco para essa gente. Não importa, o espaço formado no ventre, sempre será sala de visita, parador, abrigo, qualquer coisa assim feito colo. Um corpo estendido no térreo, foi preciso carregá-lo até o quinto andar, e tocar a campainha, tinha um neto de dona Z. capaz o suficiente de recolher o tio para dentro daquele coração materno. Ela agradeceu e ele morreu alguns meses depois, soberana cirrose, alívio imperfeito. Tatá não foi o pior. Havia também Alberto, o novo-rico da família. Depois da independência financeira, sua mãe virou história. Uma história sem livros nem fotografias, mas embolorada de presenças e mofada de sentimentos. Este, conseguiu chegar - noutra direção - num lugar muito mais distante do que Tavares achava que pudesse, numa inóspita fronteira indemarcável entre a desesperança da mãe e o desprezo do bastardo: o adeus em forma de silêncio mineral. Alberto, de tão longe, já não tinha apelido. E os cientistas ainda lutando para descobrir se o mau caráter também é uma doença...
Ele tinha perdido (quase) tudo na vida. Tavares fazia jus ao seu apelido. Outro Pinduca. Todos os dias, toda manhã, na bebida buscava esquecer, que estava vivo. Não havia rota de fuga, mas o álcool era o seu veículo de transporte. Partia sempre para algum lugar que não era ali, bem longe da sua realidade. Abandonado pelo núcleo familiar, foi terminar de destruir seu aparelho digestório com a mãe. Mães são seres que acolhem até os piores tipos de filhos. Sempre estão a espera, de uma visita, de um telefonema, de uma lembrança, com uma refeição ou de um mínimo que justificasse ao menos os nove meses de gestação, sem falar na criação da criatura. Mas existem filhos que não existem. Ou melhor, existem filhos que, para eles, as mães deixaram de existir, dada a natureza descartável que atribuíram a elas no tempo. A ingratidão é pouco para essa gente. Não importa, o espaço formado no ventre, sempre será sala de visita, parador, abrigo, qualquer coisa assim feito colo. Um corpo estendido no térreo, foi preciso carregá-lo até o quinto andar, e tocar a campainha, tinha um neto de dona Z. capaz o suficiente de recolher o tio para dentro daquele coração materno. Ela agradeceu e ele morreu alguns meses depois, soberana cirrose, alívio imperfeito. Tatá não foi o pior. Havia também Alberto, o novo-rico da família. Depois da independência financeira, sua mãe virou história. Uma história sem livros nem fotografias, mas embolorada de presenças e mofada de sentimentos. Este, conseguiu chegar - noutra direção - num lugar muito mais distante do que Tavares achava que pudesse, numa inóspita fronteira indemarcável entre a desesperança da mãe e o desprezo do bastardo: o adeus em forma de silêncio mineral. Alberto, de tão longe, já não tinha apelido. E os cientistas ainda lutando para descobrir se o mau caráter também é uma doença...
sábado, 21 de maio de 2016
NEON - 1
depois, do desamor,
vem uma paz semelhante à morte.
vem uma paz semelhante à morte.
um apogeu humano.
é quando
a gente vira mestre de si mesmo.
agora catedráticos,
é hora de lançarmos as
notas de quem não conseguimos ser...
DEpoiS do AMOR
Deslizo o indicador sobre a tela do despertador
moderninho. Acordei mais de uma hora antes do sinal. A garganta que arranhava a
madrugada pedia ainda no sono um gole d’água. No escuro, caminho silencioso em respeito
aos fantasmas da semana que eu não convido a posarem aqui, nesta deserta
hospedaria de bairro. A geladeira corta em feixes de luz a noite ausente de
sonhos, pois os desejos lânguidos permaneceram sob as cobertas azuis de inverno
brusco. A acuidade visual tomou um choque térmico ao nível da fonte de minhas lágrimas,
igualmente seca, vazia, inócua; pensei em aliená-la feito um bem imóvel. Pés no
chão, mãos ao redor do copo já vazio, coloco onde imaginei estar a mesa. Na
volta à cama, deslizo os dedos sobre as cordas do violão de nylon, pois o de
aço não é feito para recepcionar os amanheceres. Músicas antigas tomam conta do ambiente
soturno, pudera, ainda não vieram as do futuro. Ainda preenchemos o presente
com coisas do passado, obviedades que ignoramos em toda ausência de som e de tudo mais que nos falta. A voz rouca seduz a mim mesmo, em volume baixo para não
despertar os pássaros da árvore sempre verde do quintal. Pronto, já é hora de levar para a
escola um dos meus rebentos, por duas vezes engravidei uma só mulher. No caminho
chuvoso e escorregadio, a curva na entrada da Visconde e o carro ao lado
direito passa reto cortando a nossa frente subindo no canteiro, quase rodamos na
pista e por habilidade não batemos nos outros. Mal súbito? Defeito mecânico?
Celular...a dependência psíquica do objeto é metástase de uma pseudomodernidade
inversora de valores e sem tratamento, um dia mata o doente-autor, vítima de si mesmo.
A cidade começa a ser bloqueada na marcha anual em busca do Messias, o qual, se
chegasse, acabaria com toda essa folia: nunca virá, o que existe são apenas
justificativas de dominação. Volto para casa, a chuva, a árvore e os cães. Os
pães de queijo sobre a mesa sozinha, pois os fantasmas foram embora porque eu
não uso presunto. A noite se continua pela manhã embaixo do cobertor agora mais
azul-marinho, dou as mãos para o meu único aconchego, sentindo-me submerso no oceano. Rotina de sábado? Coisa nenhuma. A cidade já teve seus dias de sol, nesta
semana voltou à sua normalidade. Eu, tinha alguém no coração. Também
voltei...
quinta-feira, 19 de maio de 2016
IN VER NADA
Chegou
o frio. É hora de me afastar do rio. Correnteza que leva, leva, leva mas nunca
chega. É preciso vir mais para o centro do que é próprio, embora o rio seja da
minha natureza. Não se pode ser assim o tempo todo, nessa fluidez quase
esportiva, essa liberdade toda que conduz, há de ter frações, glebas de
calmaria: menos inspiração, mais respiração. Remodelar o espaço ao meu redor,
um novo desafio. Para tanto, inventar uma nova suspensão, interromper, parar um
pouco de ser o que se é. Não vale mais fechar as cortinas da casa. Ou passar a
tranca no portão, deixando o imóvel como se fosse desabitado, ermo. Aqui
dentro, jamais usarei lençóis sobre os móveis, nem fecharei as portas dos
cômodos. Se pudesse, não haveria paredes onde moro, em mim, nem aonde quero.
Mas temos que nos defender, às vezes até dos perigos causados por nós mesmos,
as tais aventuras, sejam simples hábitos, hobbies ou complexas compulsões. Como esse
alto risco por exemplo, em ter um rio dentro da própria vida. Acompanharei o curso de longe, em
vigília. Uma nova experiência, essa de acumular mergulhos imaginários em mim,
sem pular na água. Verei até onde sou capaz de me silenciar, caso não me afogue
na minha aridez, mudez para mim mesmo. Pois, por um tempo indeterminado, não
mais virei aqui neste rio, local, ponto de partida, que se transforma em linhas de raciocínio e páginas de sentimentos, que atravessa o meu mundo, no meio da mata que é
esta solidão toda. Sem nadar no figurado, ou escrever no restrito, tentarei outro
sentido para uma mesma vivência. Já venho fazendo isso em outras áreas de minha
terra, há de dar certo aqui também. Como dizem os experientes, a idade faz a
gente ficar muito mais leve. Porque dispensando tudo o que é supérfluo, por ser
incolor, inodoro ou insípido, e ficando somente com aquilo que a gente naturalmente sente, é
que nós levitamos. Então eu saio da água. Saio do chão. Saio dos textos e da
paixão. Paixão é uma palavra estrangeira que adaptamos à nossa realidade,
chamando aquilo que na verdade é desamor. Nesta incursão espacial, eu trouxe
muita força nos braços para desfazer as superficialidades, inclusive os nomes
aculturados que emprestei para os meus fracassos pretéritos. Mas como é bom
aqui dentro...quentinho, afável, tranquilo...vista legal das coisas...talvez por isso as pessoas
costumem compartilhar interiores, quem dera o fizessem com maestria. Caso a minha despensa fique abarrotada de não dizeres, não sentires ou quereres todos amordaçados, eu volto à beira capital. Por enquanto, não.
O inverno chegou. E com ele, meu novo e reservado caminho entre as velhas coisas que eu
insistia...
"Caminho Pro Interior" - Bruna Caram
Sessão Vintage
Um outro prato, temperos não
usuais quem sabe. Aquela calça que você jamais usaria. Novos modelos de
sapatos, gravatas, cortes de ternos. Corte de cabelo, vestidos, batom e bijus se você for mulher. Um assunto que você menosprezava até
então, discuti-lo. E um tema estranho, que tal arriscá-lo escrever? Janela, porta, outra casa, um jardim modificado com novas plantas, flores, aromas. Outro mercado, restaurante, endereços virtuais, relógio, tudo não comum a você. Passear na cidade metropolitana que você nunca foi.
Ou aqui mesmo, uma linha de ônibus urbana, no bairro que não lhe conhece. Viagem, se e quando puder. Sabor
de sorvete, banquinha de jornal, pracinha, barzinho, revistas, pessoas, novas cores. Esporte? Talvez. Estilo musical...boa. Amizades? Por que não? Perfume!
Isso, troque de perfume! Experimente um caminho alternativo que também vai dar em
sua casa. Ouse até uma nova assinatura! Enfim, tente algo diferente para
diversificar ou ampliar as suas próprias certezas na vida. Sim, invente alguma coisa, já tem muito passado nessa sua história. Mas não se preocupe com um novo
amor. Não vá. Se for o caso...se for amor...ele vem sozinho...
"Love Comes To Everyone" - George Harrison / por Trio Amaranto
quarta-feira, 18 de maio de 2016
Sessão 'Plágio de Alguém Só'
Peço uma música, ela não vem.
É
tempo de leituras, afastem-se as partituras.
Tampouco saberia lê-las, se também
não fossem cifradas.
Pode ser pior, quando não se compreende o que está
escrito.
Uma língua rica, tem opções que desprezam a pluralidade de sentidos
para uma mesma frase.
Mesmo assim, a interpretação é dependente do observador,
o leitor que dará ao texto a sua própria direção, e não necessariamente a do autor.
Sem música,
e com palavras incompreendidas, ele vai se afastando do elemento terra.
Tudo se
rarefaz, desde os sentimentos dentro do peito até o atrito com o chão lá fora
de casa.
Uma transição, em que ele lembrou o que ainda está.
Sim, vai levar
junto, é o que lhe coube no coração desta herdade...
Elba Ramalho / Funeral de Um Lavrador / Chico Buarque
Contos de Bermudas - O Trem da Meia-noite
O Trem da Meia-noite
Ele acha que já viveu demais.
Perdeu tempo em casamento. Em cidades, empregos, residências, outros relacionamentos de
menor porte, como sexo por exemplo. Não há arrependimento algum, apenas
reconhece o desperdiçar das horas. Por outro lado, pensa que há muito pela
frente. O trabalho, a praia, a solidão, o conviver com os filhos. Um paradoxo
que não sai, não alivia, enquanto não se chegar lá na frente. Mas ele volta e
vê que já passou um bocado. Não saber distinguir entre chances e bagatelas, a questão.
Precisava ter olhado para o futuro, mas foi em certas ocasiões, desses que só
vive o presente. Claro que o aprendizado vem de qualquer jeito, mas muita coisa
ele poderia ter evitado. Mas não, ousou o desafio, o assim está bom, o tudo se
transforma, e algumas vezes o tanto faz. Não damos importância às expressões
que quase usamos em determinadas situações. São sentimentos que não traduzimos
em palavras, justamente para evitar os fins se antecipando inclusive antes dos
meios. É quando louvamos a emoção passageira, em prejuízo da razão eterna. Num trem
para as estrelas, os vagões não podem ser de madeira. Pois a madeira pode até ser bonita, mas ela trabalha bastante a
cada estação, alterando a noção temporal do caminho...
terça-feira, 17 de maio de 2016
Sessão Inutilidade Pública
Paradigma da
Comunicação
Controle
social. Instrumento de manutenção das relações de poder sobre os dominados, modelo eletroeletrônico, tornozeleira aberta entre aspas. Um quadrado retangular de cristal
líquido, emitindo suspeitosa luz dentro de sua casa, sua intimidade. Altar de igreja eclética, todos são
fiéis à qualquer programação, não há senso crítico, tudo vem bem. Controle remoto, é o seu leme de discernimento, vá para onde quiser, mas nunca abandone esse mar nada navegável, você há de achar seu peixe doce. Ação física e mental, à cata de dependentes. O pacote
fechado, é o dízimo travestido. Os anunciantes, o mesmo escancarado. Esta, a programação, sob o discurso do
entretenimento. Tão que os adestrados espectadores não percebem o condão da
violência, em torno do qual tudo gira. Radiação eletromagnética, não ionizante e de baixa frequência eles dizem. Quase infantis de tanta ingenuidade seu
potencial (in)ofensivo declarado. Compre pouca energia, ganhe "informação"; na
real, pague muito e perca autonomia. Seja formado e não informado. Seja dirigido,
controlado, rotulado, amestrado pelo aparelho domador (e não doméstico) que atravessa a virada de século
como ponte para lugar nenhum. O paradigma da comunicação está aí, e ninguém
quer vê-lo, sem coragem nem inteligência para assumi-lo e transpô-lo; preferem assistir modismos artificiais no “conforto de seu lar”, mesmo que seu sofá
cheire a cachorro, sua poltrona esteja com uma mola perigosamente saltada ou se os seus vizinhos preferem gozar a vida fazendo sexo no horário nobre. Futebolzinho
pra ele, novelinha pra ela, algum desenho violento para as crianças darem um tempo nos games, claquetes de um mundo triste para os idosos e sexismo para-todos, assim
está ótimo: jogos marcados, adultério, paternidades, futilidades, desesperança e muita violência fazendo dinheiro, capital circulante. No meio disso tudo, programas de auditório com 90% de merchandising
interno, intercalado com desastres de toda ordem, desde as desgraças
familiares, passando pela rotina policial, com ênfase na morte, na tragédia; tudo transformado em algo normal, pela boca de apresentadores, animadores e âncoras completamente desqualificados para a função, sub-gente da pior espécie, estirpe, linhagem, mas totalmente biocompatíveis com o produto. Agora, lutas pseudomarciais são o clímax do caráter
violento das pessoas perdidas dentro de si mesmas, só o nocaute com vazamento de sangue alheio salva o
dia, a noite, o mês, grande compensação para a pequenez das frustrações individuais. Diversão, é ver o inimigo apanhando feito um bicho numa
cena vintage greco-romana, encurralado e sanguinolento, de preferência com
alguma fratura, melhor ainda se exposta. Os
gladiadores voltaram, e com eles os animais da gleba espectadora. Montados os
novos coliseus em qualquer lugar onde caiba mais de mil, é hora de vibrar espetáculos
naquilo que chamam de Arena. Depois que os leões foram proibidos nos palcos
provisórios dos municípios, escolheram alguns recém-homens da escala evolutiva
não darwiniana, e retiraram-lhes as facas, as adagas, os escudos e as botas. Pesam os brutamontes de cuecas, para delírio das e dos onanistas, admiradores do falo em estado latente ou não. Bordões
antigos como ringue, luta, esporte, foram trazidos da violenta natureza desumana
e colocados à baila, hemorrágica por excelência, como se não tivessem se
passado dois mil e tantos anos. O retrocesso é explícito, a involução é
passivamente absorvida como cultura, manifestação de. A luta principal, durou
menos de dois minutos. De repente, o “adversário” norte-americano desfere um
golpe certeiro no gaúcho vacilante: fim. Ninguém questionou, foi um direto na ponta do queixo que faz vibrar a articulação temporomandiular estremecendo a base do crânio na altura dos temporais: fim. Fim da luta, do contrato entre os
promotores e os donos do lugar. Começo. Começo da contagem do borderô. Reinício da volta para casa da torcida-pró-ferida com toda
aquela violência borbulhando no subconsciente, lava na garganta rouca de gritar selvagerias. O show já terminou, foi um
verdadeiro spettacolo, top of mind parindo trend topics, digno de Guinness Book tupiniquim. Pergunta-se o que fica, qual o saldo a ser medido ou descontado
além do preço alto do ingresso à barbárie. O que será que precipita sobre a índole já seriamente comprometida dos
fãs da modalidade. Argumentos como a parafernália imagética não faltam. Responde-se, que foi a televisão que os conduziu até lá. Lá é
um lugar bem longe dentro de si mesmo, um estado de natureza, terra onde a Lei Maior é de Talião, órfã de constituição qualquer. Lá, onde aflora o lado animalesco, compatível com o
estado policialesco: casamento perfeito, os convidados vieram quase todos, só
faltaram os rebeldes e atrasados e jacus que leem livros, aqueles boçais que não pactuam com hábitos medievais e, portanto, são radicalmente contra esse establishment primitivo. Siglas, luvas, heróis
de mentira, saídos dos quadrinhos para tornar fictício um mundo real, no qual
os indivíduos deveriam se ocupar com coisas construtivas. A televisão destrói. Despolitiza,
criminaliza, deseduca. Entre receitas e filmes de ação, a população vai definhando seu
presente, adepta à falsa modernidade dos costumes, tão cega quanto muda, obnubilando seu futuro. Todo o
aparato tecnológico engendradamente utilizado para o golpe da usurpação dantesca da naturalidade humana. Vitória de quem? De alguns, pouquíssimos.
Derrota: da humanidade. Televisão, o anúncio do fim da aventura humana na Terra. Espectadores:
animais acuados na jaula do lar. Ligue-a, se for incapaz...
domingo, 15 de maio de 2016
Um Homem no Espelho
A escara do tempo.
Algumas décadas de hemostasia,
colágeno em exercício.
Sobre a pele, marcas do que não se foi, ao redor do
mesmo olhar de sempre.
Ele em fase de depuração ampla, geral e irrestrita,
anistiando a si mesmo.
Jogou todas as culpas fora, ficou tão leve quanto
pensamentos de algodão.
Um processo delicado,
envolvendo procedimentos de
várias naturezas artificiosas que rondam a humana.
Papel de todos, alguns
chamam isso de dever.
O grão-mistério, é saber colocar em prática tal
aprendizado,
sem que o tempo se faça de corrente, obstáculo.
Ele decidiu, foi e
não mais voltou.
Tem algumas coisas em seu bagageiro.
Retratos do passado,
instrumentos do presente e absolutamente nada para o futuro.
Pretende construir
lá, as coisas novas que imaginou aqui.
Sorriso escondido atrás do desamor,
fazia aparecer só a metade quando se iludia.
A ilusão é uma infância
prolongada, ele concluiu uma vez.
Só mesmo os ingênuos acreditam na felicidade
plena.
Pois se fosse plena, eles nem precisariam acreditar, ou ter referenciais
de fé.
Um arco-reflexo, indicava reconhecimento de saúde.
Veículo apropriado
para fazer da próxima segunda-feira, um anteparo humano.
Chega de vidros de
areia, castelos de areia, mulheres de areia.
Ele quer é andar sobre a areia.
Andar
descalço.
E se ainda houver um rastro de pegadas femininas pelo caminho, que ele não vá
atrás.
Que ele continue fazendo daquele sentido, o seu caminho interno, um
destino bem cumprido.
Ele nunca foi dado a espelhos.
Sempre houveram vazios ao
redor de sua imagem.
Estefano não precisa ver para crer:
ele nunca deixou de sentir isso...
ele nunca deixou de sentir isso...
Contos dos Bookmakers
Balcão de Apostas
Solidão.
Grandeza de natureza par, total, completa. Não admite parceiro. Andrógina,
hermafrodita, completa-se em si e apenas nela. Tanto, que nem importa o sexo,
alheio. Há uma repulsa natural à aproximação, à percepção do outro, pela nula
recepção dos estímulos vindos de fora. Eles são descartados na avenida, sequer
chegam ao portão de casa. Na grade da pista do Jockey, ele olhava o movimento
dos animais, da apresentação, passando pelo cânter até as corridas propriamente
ditas. Olhava o esporte, como entretenimento solar e dominical. Elas chegaram
bem perto, filmando e fotografando cavalos que desfilavam a dois metros dali. Entre
selfies e jogadas de cabelos munidas a comentários fúteis sobre o turfe,
permaneceram um tempinho ao lado dele, quase coladinhas. Bonitinhas, quem sabe
ordinárias. Ele ouviu e não aceitou o convite sui generis para o bate-papo, continuou calado. A mais ousada, encostou
o braço no antebraço dele. Ele saiu pela tangente, discreto. O insucesso, ou a
indiferença do homem, afastou as mulheres ali da relva. Educadamente, ele girou
o olhar para ver de quem se tratava. Arrumadas, ainda não balzaquianas, buscavam
admiração na turba. Do lado esquerdo, uma garota de uns vinte anos, beleza exótica,
feito indiana, uma íris que fazia inveja ao mais lindo dos verdes mares. Profissional,
ele concluiu. Também depois de um tempo, ela foi trotar noutro lugar. Após três
corridas, ele foi embora dali. Tranquilo, mesmo lamentando o espírito selvagem
do ambiente, onde pessoas aproveitam-se da aglomeração para trabalhar seus
interesses, pelo instrumento dos seus corpos. O mundo anda tão complicado, que
os corações sozinhos estão apelando para as solidões alheias. Tolos, não sabem
eles que para quem é solitário, não há pista. Não tem apresentação, cânter, corridas.
A concepção da vida é outra. Não seriam mil e duzentos metros, tampouco dois
mil metros percorridos que se permitiria chegar ao pódio. É quase uma ofensa
considerar que a solidão possa sucumbir a qualquer investida, perfumada,
decotada, erotizada, arriscada. Como é bom chegar em casa e não ter que dar satisfações
a quem precise de você só para suprir necessidades, carências ou vontades de
emparelhar partidores a fim somente de cruzar a faixa final acompanhado...
Crônica Cotidiana 30
Um Colo
O frio da
manhã, a mãe e a filha a pé na calçada na quadra do hospital. A pequena no colo
da moça nova. Acelerei um pouco, queria ver seus rostos antes do sinaleiro.
Elas sorriam no entreolhar dos mais lindos que eu já não via. Ela contava
alguma coisa para a menina, que parecia não ser princípio de inverno. Eu vi
calor. Era o amor. Eu vi o amor. Chorei feito um tímido, disfarcei feito ator.
Aquilo me invadiu de tal forma, que perdi minhas respostas sobre a vida,
percebendo que minhas perguntas são mais vãs do que qualquer sociologia. Se era
a raridade do momento ou não passava do meu tempo comum, minha reação. Um pouco
dos dois, a justificativa emprestada de mim mesmo, costume que temos diante das incertezas. Mas não me apeguei muito nas razões, diante de
tal emoção ali naquela cidade, ali na rua. Onde estaria o pai, é uma coisa que
me vem à cabeça desde pequeno, quando perdi o meu, sempre fico imaginando onde
estão os pais das pessoas. Não pude fotografar, o que ficou revelado e guardado
em minha mente. Uma relação fraterna, frutífera, aquelas duas iriam viver
inúmeros momentos iguais ou melhores na vida. Parecia não haver diferença de
idade, uma comunhão entre dois seres afins. Pena que esse tipo de coisa ocorra
mais entre parentes, os não consanguíneos deixam a desejar. Joyce trazia Joana de uma consulta, o clima tentava presenteá-la como uma pneumonia. Medicada,
estavam indo ao ponto de ônibus para retornar à sua casa. Lá, o pai estava lavando
o carro. A mãe era independente nas suas atitudes, mas ainda presa ao modelo
conjugal. Joaninha cresceria sem jamais saber quem o pai era para a mãe. Esta,
fez questão de não contar tais detalhes, os quais negava serem fundamento. Coisa rara, pessoas mantendo ética
sobre as relações, sem interferir na opinião alheia. Uma ciência jurídica em
desuso ultimamente, chama o contrário disso de alienação parental. Então, uma
vez existente, vão aos tribunais requerer reparações. Não era preciso que a
pequena hoje grande soubesse do pai pelos autos. A intuição, demora mas não
tarda a responder aquilo que, por vergonha, nunca foi questionado...
sábado, 14 de maio de 2016
quinta-feira, 12 de maio de 2016
Nota de Falecimento - 11 de maio de 2016
Um coração metropolitano. Pulsa, com ligeira disritmia,
só porque a vida é uma grande chance. Despertar às cinco horas e trinta minutos
da manhã, sem aviso, para começar um novo dia velho. Mas quando saio lá fora,
percebo que a neblina toma conta da cidade, através de dois órgãos dos
sentidos. O estômago vazio ferve a pouca bile que contém. Um cheiro
inexplicável de enxofre, misturado com amônia, invade os organismos de
convivência matutina. Uns, ignoram pelo hábito. Eu, revolto-me comigo mesmo. Um
município desse porte, sucumbe à névoa cortina que deita sobre a terra de
cimento, fazendo circular gases inodoros como se estivéssemos inalando uma coluna
inteira da tabela periódica dos elementos, sem nobreza alguma. A química do
homem, deteriorando seu físico. Não adianta abrir as janelas, o odor já se
instalou na mente. Os pulmões resistem mais do que o coração, trabalhando
arduamente para assimilar toda essa chuva ácida em forma nebulosa. Precipita
sim, até sobre nossas consciências. Uma poluição que afeta o futuro. Enquanto
meu amor virou inodoro, a podridão dos homens públicos aquece a degradação
da democracia, sublimando as esperanças, numa atípica reação química onde o
soluto somos nós, o povo. O povo, do lado de fora da própria sociedade...
terça-feira, 10 de maio de 2016
terça-feira, 3 de maio de 2016
Flash Imobile
Crédito
ou Débito?
Ela gostou
da voz dele. Mas não era bem isso. Moça do caixa da padaria, feita um solzinho
naquela capital fria, aquecia o impossível daquele senhor que ali frequentava. Quase
todos os dias, uma rotina que virou costume, sem traços de tradição. Ambos, estenderam-se
no tempo, aproximando-se sem saber por que. Era a jovialidade dela, versus a
experiência dele. Um misto de educação, cordialidade e urbanidade, que não é
tão comum por aí nas cidades. Enquanto ela sentia cócegas nos ouvidos diante de
um bom dia, ele tinha a mesma sensação nos olhos ao sorriso dela. Quando as
coisas acontecem sem interesses, a dimensão é tão distante, que fica difícil
até de escrever. Veio um e disse que ela não tinha pai, e por isso
encarinhava-se pela presença do velho. Foi o mesmo, sabe-tudo, que afirmou ser
a solidão dele a razão da estorinha. Talvez isso seja ternura. Ou quem sabe,
não seja nada e pelo fato de que o mundo anda tão complicado, isso parece ser
algo, em razão da diferença de estar das coisas. Dois seres humanos, um tempo
no meio, quase duas gerações de intervalo. Mas ali, ali na frente daquele
caixa, o espaço derrotava as horas, por nocaute existencial. Ela lhe perguntava
alguma coisa, ele respondia, numa troca de suavidades que pareciam navegar em
mar de Almirante. Nada corporal, carnal ou erótico como poderia concluir o mais
ávido e banal dos superficialistas, um outro sábio-mor; era apenas uma leva
humana, mútua sensação de bem-estar. Dessas que se desenvolvem sem a conotação do sexo, da procriação, do
animal que há em todos. Nem se pergunta o que havia nela, que lhe aprazia, e
vice-versa. Familiaridade? Identidade? Repito, não se pergunta. Ainda insistimos em questionar aquilo que não tem resposta. Depois do
pagamento, um olhar trocado com a força da inocência, do desapego, do até
amanhã. Talvez ele fosse um pequeno luar para ela. A vida naturalmente preconceituosa impediu uma conversa,
poderiam contar coisas, histórias, gargalhar, tudo em torno do afeto descompromissado. Ele
foi embora, para sempre naquela quinta-feira, morreria classicamente de infarto
após o almoço. Ela jamais ficou sabendo. Ele permanece vivo em sua memória, na prateleira das coisas que nunca viriam a acontecer...
segunda-feira, 2 de maio de 2016
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