segunda-feira, 30 de maio de 2016

phOTOCALIGRAfIA





Mais Um..


Dizem que é para comemorar em reunião mais um ano de vida. A coisa retroage: o ano já se passou e assim se conseguiu completar mais um determinado tempo. Comemora-se o quê, então? As vitórias? As conquistas e as ascensões? E se não houve nada disso, o que comemorar? A neutralidade, a estagnação e as mesmices da humanidade são dignas de festança? E se foi um ano de baixas, de perdas e derrotas? Ah, mas comemore-se o que se venceu, mesmo que seja em menor quantidade do que aquilo que se perdeu, o que importa é chegar até aqui, vivo. Aqui aonde? Vivo de que jeito? Basta respirar? Tradições centenárias pra não dizer seculares necessitam serem revistas. Penso que o aniversário merece outro tipo de celebração. Não havia muita gente na sala do hospital na hora do nascimento. Eles vieram depois. E outros não ficaram. E outros partiram ao longo dos anos. A outra sala hoje estará com pouca gente. Ele queria é estar bem longe daqui. Desse frio, da sala pequena, das comidas sobre a mesa. Um estrogonofe, um bolo sem velas e uma cantoria, já não fazem mais sentido. Nada mudarão. Quando o caminho é a introspecção, requer-se o isolamento, mesmo que seja monofásico. Tudo isso é adereço, perfume, embrulho, encadernação de um livro apenas escrito. Quando a gente elege coisas mais importantes na vida, as outras coisas importantes deixam de ser, e passam a integrar o rol das superfluidades. Ao mesmo tempo, ele ainda não descobriu o caminho que levasse até a data certa, na profundidade certa e bem medida das coisas, sem exageros nem obrigações. Ele não queria ir nessa festinha. Ele já não gosta de comemorar tradições. Ele não quer comemorar o passado. Ele nem sabe acabar esse texto. É que ele ainda não aprendeu a comemorar o amanhã... 




 Soneto de aniversário 

 Passem-se dias, horas, meses, anos 
 Amadureçam as ilusões da vida 
 Prossiga ela sempre dividida 
 Entre compensações e desenganos. 

 Faça-se a carne mais envilecida 
 Diminuam os bens, cresçam os danos 
 Vença o ideal de andar caminhos planos 
 Melhor que levar tudo de vencida. 

 Queira-se antes ventura que aventura 
 À medida que a têmpora embranquece 
 E fica tenra a fibra que era dura. 

 E eu te direi: amiga minha, esquece... 
 Que grande é este amor meu de criatura 
 Que vê envelhecer e não envelhece.  

- Vinícius de Moraes 



Sessão L'Archipel




- elas são muitas. mas na história de cada um, existe uma principal. de tal maneira, que se considera incomparável, as outras são as outras e só. escrevo sobre as Sandras. ou melhor, sobre uma só. a Sandra da minha história. 



De Temps En Temps 

 /Era uma vez...desde cedo, sentada na turma do outro lado daquela sala na Aliança, seu olhar tímido não escondia o sorriso. Morena, brasileiríssima demais. Não chegava a parar o trânsito, só porque era discreta. Nas roupas, na postura, no comportamento. E também nos sorrisos, não eram para todos. Uma pessoa reservada, digna de conhecê-la para saber mais. Mais do mundo. 
 Ela, La Blonde, Vanessa e ele formaram um grupinho legal naquele semestre. Ultrapassaram as fronteiras do liceu francês ali da Prudente de Moraes. Alguns aniversários, bares, casamentos. La Blonde, apaixonada por Marcelo, dali também. Vanessa, carregando seus cinco fãs a tiracolo, e muitas dúvidas sobre qual deveria escolher, perguntava o absurdo, amava ninguém e vice-versa. Ele, sempre sozinho por naturalidade, fazia curso integral que só lhe disponibilizava à noite. 
 Sandra, estava noiva na época. Ele não sabia se os olhares que desviavam nas paredes da sala quando ele a fitava, era por isso, pelo noivado e as suas regras. Mas a aproximação foi inevitável. Tinha aquele algo a ver, e não era raso. A coisa que marcou foram as risadas dela, na presença das brincadeiras dele. Uma segunda, impublicável.
 A noite, a cama e a relação conturbada. Pudera, a insegurança dela tinha conteúdo, motivação, fundamento. Ele respeitou, afinal, chegara depois do outro. 
 E assim se lançaram no tempo. Intervalos enormes caíam por terra quando se reencontravam. Na praia, ela sem pudores, quase livre. Mas um quase que praticamente se eternizou. E ele sempre respeitando. 
 Dia desses, ele resolveu voltar em algum lugar do passado. Não houve explicação para ter feito isso. Chegou lá, o porteiro disse que ela havia se mudado há alguns meses, junto com um sujeito. Presumiu relação. Lamentou o atraso. Não desistiu, foi atrás até que conseguiu. 
 A ligação e a mesma risada. Outras brincadeiras ele trouxe, para novos sorrisos. Ela contou muito, do seu momento, de sua escolha, vivia agora reservadamente em tempo e espaço, e gentes. Combinaram algum encontro, não deu certo. Provavelmente, o receio dela voltou à tona, mesmo tendo ele lhe assegurado da ausência de intenções. Não era pra medo, ele só queria revê-la.  
 Mas os tempos mudaram muito e com isso as pessoas também. Hoje, todo mundo acha que ninguém mais faz algo sem querer alguma outra coisa em troca, pode ser o que for. É uma pena. Isso afasta a própria condição humana, remetendo os seres a um habitat essencialmente animalesco, selvagem, capital. Inóspito para confraternização, amizades e coisas afins. Quem dirá, para simples ou importantes reencontros. 
 O passado, cada vez mais se torna, mais do que um livro, um verdadeiro espaço deste livro na estante, não sendo de bom alvitre demorar-se com ele, o livro, fora do lugar. Poeira do pretérito, é o que chamam e generalizam, no caso do livro ser aberto, e colocado novamente em cima da mesa, novamente dentro da pasta, novamente dentro do peito. Por mais que isto traga boas lembranças. E por mais que aquele tempo não tenha sido vivido direito, ou adequadamente, sem importar as razões. Pois foi um tempo, acompanhado de espaços proibidos. 
 Nos dia de hoje, revisitar parece ofensivo. Tão apertados estão os livros na biblioteca, periga cair a estante, a casa, o mundo, o próprio tempo. 
 E de tempos em tempos, chega um dia em que o espaço acaba. Mas naquela sala, a memória dos bons momentos jamais se apagará. L’archipel ficou distante, continuamos a boiar no mar das relações interrompidas pela modernidade./ 



 Não houve aliança. 
 Ela, teve o seu motivo para não ter vindo 
 Ele também, por ter voltado.. 
 Tantas ilhas naquele arquipélago, 
 Que ambos, 
     perderam-se entre os arrecifes. 
 O continente, era logo ali... 



"De Temps En Temps" - Grégory Lemarchal




domingo, 29 de maio de 2016

Distopia de Um Só Homem




Ela está se aproximando. A grande explosão. Um estrondo, junto com sua enorme destruição. Há tempos orbita no céu, aguardando a hora certa para despencar sobre aqui. Ou esconde-se no centro da Terra, esperando emergir. Virá, que eu sei, em forma de acidente, e como todo acidente, será um fruto negligente. O fogo, a inundação, o vendaval ou o desmoronamento chegarão depois, após o impacto. Não significará um cataclismo, pois recairá apenas sobre mim. Quando a tragédia é individual, não entra para a história dos homens, isto requer quantidade. Explicar minha parte culposa nesse evento, não é missão, mas é impossível. O quê eu teria feito, quando, aonde, como, por que, para quem...não há resposta, fui praticante do bem. Nada fiz de mal para os outros, até ajudei muita gente. Vai ver que o bem que fiz para mim mesmo, justificaria o fim das coisas à maneira de uma única e solene explosão. Mais um paradoxo para minha lista de Schindler, onde constam ainda coincidências, desencontros, indiferenças, silêncios e metades. Uma lista que não é de papel, pois nele guardo outras coisas; como o desamor e os meus pontos-e-vírgulas, por exemplo. Mas se a explosão é das coisas, obviamente o papel também será atingido. Pressentimento, anunciação, o final já começou. Serão pouquíssimos segundos para escutá-la, antes daquela turba de elementos da natureza tomar conta do meu redor. E tem gente que diz que “a idade vai chegando”. Na verdade, ela está é indo. A idade vai-se indo como caminha a labareda num pavio: no fim, a bomba. Nada apaguei, fiquei aqui bem longe. Aqui no conforto de minha consciência, aquecido com as mantas de minha poesia, embalando-me ao som da música universal. Aqui, refrescado pela brisa daquilo que me inspira, na alegre companhia de minha solidão, sentindo o doce perfume de todas as minhas verdades. Aqui, no meu canto, o único lugar onde eu consigo compreender ou dimensionar o que aqueles homens um dia chamaram de virtú... 



quarta-feira, 25 de maio de 2016

Lendas Urbanas




João e a Mão de Arroz 
O correio continua arisco. Ele transformou-se, cresceu e invadiu até as casamatas, até os eremitas. É a hodierna comunicação entre os humanos revelando inclusive as características impróprias da espécie. Peculiaridades, particularidades, intimidades e tantas outras ‘dades’. Menos 'tudes', e bem mais 'oses' e 'ites'. Ação e omissão em matrimônio perfeito, sem prejuízo do equilíbrio, este não se faz necessário. O mundo ao alcance dos dedos. Mas não é o mundo aí de fora, é outro mundo. Mas também não é o mundo de dentro. Digamos que é um mundo...trigonométrico, isso. Um mundo aonde figuras imaginárias vão ganhando formas de acordo com os traços elaborados pelo pensamento. Sem nenhum compasso, nenhum esquadro, apenas à mão "livre". Pior, vão sequestrando até os conteúdos de outras coisas reais, inclusive de sentimentos. Por isso, a invasão. Comunicadores, os atores sociais despontam no firmamento estelar deste mundo, emitindo a luz que bem entendem, natural ou artificiosamente elaborada em (des)favor das suas conveniências - palavrinha tosca essa, emprestaram até para lojículas em postos de combustíveis. Pode tudo, tudo vale, não há limites. Não há princípios, valores, virtudes. Se a terra é de ninguém, invadamos todos. Lei? Muito embrionária ainda. Embriões não são nem imaginados às vezes. João apenas gostava de Maria que pensava que o amava. Mas ele conheceu Ana, a qual sucumbiu às difamações de Maria. Então sozinho, ele nem chegou a conhecer Miriam, que por sua vez foi convencida pelas injúrias de Mônica, que andou um pouco com João mas amava Pedro. A ex de João, também mentira para fulana que caluniou João para Mônica. Sim, um carrossel anguloso de fofocas não presenciais, cuja virtualidade ganha contornos falsos de facticidade, pelos tais desenhos geométricos traçados em linhas tortas sobre papel crepon. Um desfile de crimes contra a honra, os quais, uma vez ajuizados, perder-se-iam no tempo vindouro, outrora mal aproveitado dessas relações carentes de presença. O quê? Presença? Aquela coisa de entreolhares, expressões faciais, trejeitos, sensações, perfumes, toques, cafunés e belezas? kkk, isso é supérfluo, jacu e engorda. Estamos no século XXI meu nego, onde os juízos de valor se formam em velocidades de 10 a 25 mega(bits): tecnologia para auxílio da consciência, é o discurso. Tato na tecla, olho na tela, voz na escrita e o resto é dado processado. Deixa que eu acho quem ache algo de ti, que eu te direi quem és. Mundo bizarro, programas de auditório foram alocados para o cotidiano real, portanto surreal. Historinha típica para exemplificar a clássica pergunta que se responde por exclusão: “de onde vem o amor?”. Sabe-se, experimental ou cientificamente, que das confabulações entre os sujeitos é que não, muito pelo contrário: isso destrói. Então, pensando num final feliz, João abdicou de vez de uma coisa chamada companhia. Pois quem acredita em terceiros, ignora por completo não apenas a possibilidade de ter alguém (e sem se preocupar com a nomenclatura do relacionamento), mas ignora principalmente a chance de viver um grande amor, mesmo que isso não seja obrigatório. Assim, fazendo da liberdade da comunicação moderninha um exercício de irresponsabilidades, inconsequências e injustiças, as pessoas se apequenam, impossibilitando caber nelas tal sentimento. Quando vem, é igualmente proporcional ao dano causado ao próximo; que pena, são coisas da Física. Todavia, seja a pequenez diretamente proporcional à frustração. João não admite ter que desmentir boatos e/ou absurdos para aqueles que não possuem a capacidade de identificar a veracidade do mundo, subjugando-a aos seus interesses ou vontades ou caprichos ou maldades. Quando se chega ao ponto de ter que convencer alguém sobre uma ou mais verdades, é porque este alguém é propenso à falsidade: segura na mão de quem quiser, e vai! João não é professor, nem aluno, nem guru, nem guri. Terapeuta, João jamais seria. João também não sonha um grande amor. Mais do que ficar se afundando em maledicências internéticas na vida dos outros, ele pensa que as pessoas tinham que ocupar seu tempo com algo eticamente construtivo na própria vida. Mais do que parboilizados, os sentimentos deveriam ser integrais. Assim como azeite de oliva e cebola, são fundamentais; mas só para quem se habilita, é claro. João rima muito bem e tão bonitinho com solidão. João não tem mais tamanho, porque não é mais mensurável. Portanto, ele não cabe em coração algum...      




terça-feira, 24 de maio de 2016

Contos 3/4




Via Dupla 
Ele tinha perdido (quase) tudo na vida. Tavares fazia jus ao seu apelido. Outro Pinduca. Todos os dias, toda manhã, na bebida buscava esquecer, que estava vivo. Não havia rota de fuga, mas o álcool era o seu veículo de transporte. Partia sempre para algum lugar que não era ali, bem longe da sua realidade. Abandonado pelo núcleo familiar, foi terminar de destruir seu aparelho digestório com a mãe. Mães são seres que acolhem até os piores tipos de filhos. Sempre estão a espera, de uma visita, de um telefonema, de uma lembrança, com uma refeição ou de um mínimo que justificasse ao menos os nove meses de gestação, sem falar na criação da criatura. Mas existem filhos que não existem. Ou melhor, existem filhos que, para eles, as mães deixaram de existir, dada a natureza descartável que atribuíram a elas no tempo. A ingratidão é pouco para essa gente. Não importa, o espaço formado no ventre, sempre será sala de visita, parador, abrigo, qualquer coisa assim feito colo. Um corpo estendido no térreo, foi preciso carregá-lo até o quinto andar, e tocar a campainha, tinha um neto de dona Z. capaz o suficiente de recolher o tio para dentro daquele coração materno. Ela agradeceu e ele morreu alguns meses depois, soberana cirrose, alívio imperfeito. Tatá não foi o pior. Havia também Alberto, o novo-rico da família. Depois da independência financeira, sua mãe virou história. Uma história sem livros nem fotografias, mas embolorada de presenças e mofada de sentimentos. Este, conseguiu chegar - noutra direção - num lugar muito mais distante do que Tavares achava que pudesse, numa inóspita fronteira indemarcável entre a desesperança da mãe e o desprezo do bastardo: o adeus em forma de silêncio mineral. Alberto, de tão longe, já não tinha apelido. E os cientistas ainda lutando para descobrir se o mau caráter também é uma doença... 




sábado, 21 de maio de 2016

NEON - 1


depois, do desamor, 
vem uma paz semelhante à morte. 
um apogeu humano. 
é quando a gente vira mestre de si mesmo. 
agora catedráticos, 
é hora de lançarmos as notas de quem não conseguimos ser...




DEpoiS do AMOR  
Deslizo o indicador sobre a tela do despertador moderninho. Acordei mais de uma hora antes do sinal. A garganta que arranhava a madrugada pedia ainda no sono um gole d’água. No escuro, caminho silencioso em respeito aos fantasmas da semana que eu não convido a posarem aqui, nesta deserta hospedaria de bairro. A geladeira corta em feixes de luz a noite ausente de sonhos, pois os desejos lânguidos permaneceram sob as cobertas azuis de inverno brusco. A acuidade visual tomou um choque térmico ao nível da fonte de minhas lágrimas, igualmente seca, vazia, inócua; pensei em aliená-la feito um bem imóvel. Pés no chão, mãos ao redor do copo já vazio, coloco onde imaginei estar a mesa. Na volta à cama, deslizo os dedos sobre as cordas do violão de nylon, pois o de aço não é feito para recepcionar os amanheceres. Músicas antigas tomam conta do ambiente soturno, pudera, ainda não vieram as do futuro. Ainda preenchemos o presente com coisas do passado, obviedades que ignoramos em toda ausência de som e de tudo mais que nos falta. A voz rouca seduz a mim mesmo, em volume baixo para não despertar os pássaros da árvore sempre verde do quintal. Pronto, já é hora de levar para a escola um dos meus rebentos, por duas vezes engravidei uma só mulher. No caminho chuvoso e escorregadio, a curva na entrada da Visconde e o carro ao lado direito passa reto cortando a nossa frente subindo no canteiro, quase rodamos na pista e por habilidade não batemos nos outros. Mal súbito? Defeito mecânico? Celular...a dependência psíquica do objeto é metástase de uma pseudomodernidade inversora de valores e sem tratamento, um dia mata o doente-autor, vítima de si mesmo. A cidade começa a ser bloqueada na marcha anual em busca do Messias, o qual, se chegasse, acabaria com toda essa folia: nunca virá, o que existe são apenas justificativas de dominação. Volto para casa, a chuva, a árvore e os cães. Os pães de queijo sobre a mesa sozinha, pois os fantasmas foram embora porque eu não uso presunto. A noite se continua pela manhã embaixo do cobertor agora mais azul-marinho, dou as mãos para o meu único aconchego, sentindo-me submerso no oceano. Rotina de sábado? Coisa nenhuma. A cidade já teve seus dias de sol, nesta semana voltou à sua normalidade. Eu, tinha alguém no coração. Também voltei...  




quinta-feira, 19 de maio de 2016

IN VER NADA




Chegou o frio. É hora de me afastar do rio. Correnteza que leva, leva, leva mas nunca chega. É preciso vir mais para o centro do que é próprio, embora o rio seja da minha natureza. Não se pode ser assim o tempo todo, nessa fluidez quase esportiva, essa liberdade toda que conduz, há de ter frações, glebas de calmaria: menos inspiração, mais respiração. Remodelar o espaço ao meu redor, um novo desafio. Para tanto, inventar uma nova suspensão, interromper, parar um pouco de ser o que se é. Não vale mais fechar as cortinas da casa. Ou passar a tranca no portão, deixando o imóvel como se fosse desabitado, ermo. Aqui dentro, jamais usarei lençóis sobre os móveis, nem fecharei as portas dos cômodos. Se pudesse, não haveria paredes onde moro, em mim, nem aonde quero. Mas temos que nos defender, às vezes até dos perigos causados por nós mesmos, as tais aventuras, sejam simples hábitos, hobbies ou complexas compulsões. Como esse alto risco por exemplo, em ter um rio dentro da própria vida. Acompanharei o curso de longe, em vigília. Uma nova experiência, essa de acumular mergulhos imaginários em mim, sem pular na água. Verei até onde sou capaz de me silenciar, caso não me afogue na minha aridez, mudez para mim mesmo. Pois, por um tempo indeterminado, não mais virei aqui neste rio, local, ponto de partida, que se transforma em linhas de raciocínio e páginas de sentimentos, que atravessa o meu mundo, no meio da mata que é esta solidão toda. Sem nadar no figurado, ou escrever no restrito, tentarei outro sentido para uma mesma vivência. Já venho fazendo isso em outras áreas de minha terra, há de dar certo aqui também. Como dizem os experientes, a idade faz a gente ficar muito mais leve. Porque dispensando tudo o que é supérfluo, por ser incolor, inodoro ou insípido, e ficando somente com aquilo que a gente naturalmente sente, é que nós levitamos. Então eu saio da água. Saio do chão. Saio dos textos e da paixão. Paixão é uma palavra estrangeira que adaptamos à nossa realidade, chamando aquilo que na verdade é desamor. Nesta incursão espacial, eu trouxe muita força nos braços para desfazer as superficialidades, inclusive os nomes aculturados que emprestei para os meus fracassos pretéritos. Mas como é bom aqui dentro...quentinho, afável, tranquilo...vista legal das coisas...talvez por isso as pessoas costumem compartilhar interiores, quem dera o fizessem com maestria. Caso a minha despensa fique abarrotada de não dizeres, não sentires ou quereres todos amordaçados, eu volto à beira capital. Por enquanto, não. O inverno chegou. E com ele, meu novo e reservado caminho entre as velhas coisas que eu insistia... 


"Caminho Pro Interior" - Bruna Caram



Sessão Vintage


Um outro prato, temperos não usuais quem sabe. Aquela calça que você jamais usaria. Novos modelos de sapatos, gravatas, cortes de ternos. Corte de cabelo, vestidos, batom e bijus se você for mulher. Um assunto que você menosprezava até então, discuti-lo. E um tema estranho, que tal arriscá-lo escrever? Janela, porta, outra casa, um jardim modificado com novas plantas, flores, aromas. Outro mercado, restaurante, endereços virtuais, relógio, tudo não comum a você. Passear na cidade metropolitana que você nunca foi. Ou aqui mesmo, uma linha de ônibus urbana, no bairro que não lhe conhece. Viagem, se e quando puder. Sabor de sorvete, banquinha de jornal, pracinha, barzinho, revistas, pessoas, novas cores. Esporte? Talvez. Estilo musical...boa. Amizades? Por que não? Perfume! Isso, troque de perfume! Experimente um caminho alternativo que também vai dar em sua casa. Ouse até uma nova assinatura! Enfim, tente algo diferente para diversificar ou ampliar as suas próprias certezas na vida. Sim, invente alguma coisa, já tem muito passado nessa sua história. Mas não se preocupe com um novo amor. Não vá. Se for o caso...se for amor...ele vem sozinho... 

 "Love Comes To Everyone" - George Harrison  /  por Trio Amaranto 



quarta-feira, 18 de maio de 2016

Alforria - Música em SOL


Here, There & Everywhere - Lennon & McCartney / by JocelYn Ong



Sessão 'Plágio de Alguém Só'


Peço uma música, ela não vem. 
É tempo de leituras, afastem-se as partituras. 
Tampouco saberia lê-las, se também não fossem cifradas. 
Pode ser pior, quando não se compreende o que está escrito. 
Uma língua rica, tem opções que desprezam a pluralidade de sentidos para uma mesma frase. 
Mesmo assim, a interpretação é dependente do observador, o leitor que dará ao texto a sua própria direção, e não necessariamente a do autor. 
Sem música, e com palavras incompreendidas, ele vai se afastando do elemento terra. 
Tudo se rarefaz, desde os sentimentos dentro do peito até o atrito com o chão lá fora de casa. 
Uma transição, em que ele lembrou o que ainda está. 
Sim, vai levar junto, é o que lhe coube no coração desta herdade...  


Elba Ramalho / Funeral de Um Lavrador / Chico Buarque



Contos de Bermudas - O Trem da Meia-noite





O Trem da Meia-noite 
Ele acha que já viveu demais. Perdeu tempo em casamento. Em cidades, empregos, residências, outros relacionamentos de menor porte, como sexo por exemplo. Não há arrependimento algum, apenas reconhece o desperdiçar das horas. Por outro lado, pensa que há muito pela frente. O trabalho, a praia, a solidão, o conviver com os filhos. Um paradoxo que não sai, não alivia, enquanto não se chegar lá na frente. Mas ele volta e vê que já passou um bocado. Não saber distinguir entre chances e bagatelas, a questão. Precisava ter olhado para o futuro, mas foi em certas ocasiões, desses que só vive o presente. Claro que o aprendizado vem de qualquer jeito, mas muita coisa ele poderia ter evitado. Mas não, ousou o desafio, o assim está bom, o tudo se transforma, e algumas vezes o tanto faz. Não damos importância às expressões que quase usamos em determinadas situações. São sentimentos que não traduzimos em palavras, justamente para evitar os fins se antecipando inclusive antes dos meios. É quando louvamos a emoção passageira, em prejuízo da razão eterna. Num trem para as estrelas, os vagões não podem ser de madeira. Pois a madeira pode até ser bonita, mas ela trabalha bastante a cada estação, alterando a noção temporal do caminho... 


terça-feira, 17 de maio de 2016

Ciranda do Ser & Não Ser





Sessão Inutilidade Pública




Paradigma da Comunicação 
Controle social. Instrumento de manutenção das relações de poder sobre os dominados, modelo eletroeletrônico, tornozeleira aberta entre aspas. Um quadrado retangular de cristal líquido, emitindo suspeitosa luz dentro de sua casa, sua intimidade. Altar de igreja eclética, todos são fiéis à qualquer programação, não há senso crítico, tudo vem bem. Controle remoto, é o seu leme de discernimento, vá para onde quiser, mas nunca abandone esse mar nada navegável, você há de achar seu peixe doce. Ação física e mental, à cata de dependentes. O pacote fechado, é o dízimo travestido. Os anunciantes, o mesmo escancarado. Esta, a programação, sob o discurso do entretenimento. Tão que os adestrados espectadores não percebem o condão da violência, em torno do qual tudo gira. Radiação eletromagnética, não ionizante e de baixa frequência eles dizem. Quase infantis de tanta ingenuidade seu potencial (in)ofensivo declarado. Compre pouca energia, ganhe "informação"; na real, pague muito e perca autonomia. Seja formado e não informado. Seja dirigido, controlado, rotulado, amestrado pelo aparelho domador (e não doméstico) que atravessa a virada de século como ponte para lugar nenhum. O paradigma da comunicação está aí, e ninguém quer vê-lo, sem coragem nem inteligência para assumi-lo e transpô-lo; preferem assistir modismos artificiais no “conforto de seu lar”, mesmo que seu sofá cheire a cachorro, sua poltrona esteja com uma mola perigosamente saltada ou se os seus vizinhos preferem gozar a vida fazendo sexo no horário nobre. Futebolzinho pra ele, novelinha pra ela, algum desenho violento para as crianças darem um tempo nos games, claquetes de um mundo triste para os idosos e sexismo para-todos, assim está ótimo: jogos marcados, adultério, paternidades, futilidades, desesperança e muita violência fazendo dinheiro, capital circulante. No meio disso tudo, programas de auditório com 90% de merchandising interno, intercalado com desastres de toda ordem, desde as desgraças familiares, passando pela rotina policial, com ênfase na morte, na tragédia; tudo transformado em algo normal, pela boca de apresentadores, animadores e âncoras completamente desqualificados para a função, sub-gente da pior espécie, estirpe, linhagem, mas totalmente biocompatíveis com o produto. Agora, lutas pseudomarciais são o clímax do caráter violento das pessoas perdidas dentro de si mesmas, só o nocaute com vazamento de sangue alheio salva o dia, a noite, o mês, grande compensação para a pequenez das frustrações individuais. Diversão, é ver o inimigo apanhando feito um bicho numa cena vintage greco-romana, encurralado e sanguinolento, de preferência com alguma fratura, melhor ainda se exposta. Os gladiadores voltaram, e com eles os animais da gleba espectadora. Montados os novos coliseus em qualquer lugar onde caiba mais de mil, é hora de vibrar espetáculos naquilo que chamam de Arena. Depois que os leões foram proibidos nos palcos provisórios dos municípios, escolheram alguns recém-homens da escala evolutiva não darwiniana, e retiraram-lhes as facas, as adagas, os escudos e as botas. Pesam os brutamontes de cuecas, para delírio das e dos onanistas, admiradores do falo em estado latente ou não. Bordões antigos como ringue, luta, esporte, foram trazidos da violenta natureza desumana e colocados à baila, hemorrágica por excelência, como se não tivessem se passado dois mil e tantos anos. O retrocesso é explícito, a involução é passivamente absorvida como cultura, manifestação de. A luta principal, durou menos de dois minutos. De repente, o “adversário” norte-americano desfere um golpe certeiro no gaúcho vacilante: fim. Ninguém questionou, foi um direto na ponta do queixo que faz vibrar a articulação temporomandiular estremecendo a base do crânio na altura dos temporais: fim. Fim da luta, do contrato entre os promotores e os donos do lugar. Começo. Começo da contagem do borderô. Reinício da volta para casa da torcida-pró-ferida com toda aquela violência borbulhando no subconsciente, lava na garganta rouca de gritar selvagerias. O show já terminou, foi um verdadeiro spettacolo, top of mind parindo trend topics, digno de Guinness Book tupiniquim. Pergunta-se o que fica, qual o saldo a ser medido ou descontado além do preço alto do ingresso à barbárie. O que será que precipita sobre a índole já seriamente comprometida dos fãs da modalidade. Argumentos como a parafernália imagética não faltam. Responde-se, que foi a televisão que os conduziu até lá. Lá é um lugar bem longe dentro de si mesmo, um estado de natureza, terra onde a Lei Maior é de Talião, órfã de constituição qualquer. Lá, onde aflora o lado animalesco, compatível com o estado policialesco: casamento perfeito, os convidados vieram quase todos, só faltaram os rebeldes e atrasados e jacus que leem livros, aqueles boçais que não pactuam com hábitos medievais e, portanto, são radicalmente contra esse establishment primitivo. Siglas, luvas, heróis de mentira, saídos dos quadrinhos para tornar fictício um mundo real, no qual os indivíduos deveriam se ocupar com coisas construtivas. A televisão destrói. Despolitiza, criminaliza, deseduca. Entre receitas e filmes de ação, a população vai definhando seu presente, adepta à falsa modernidade dos costumes, tão cega quanto muda, obnubilando seu futuro. Todo o aparato tecnológico engendradamente utilizado para o golpe da usurpação dantesca da naturalidade humana. Vitória de quem? De alguns, pouquíssimos. Derrota: da humanidade. Televisão, o anúncio do fim da aventura humana na Terra. Espectadores: animais acuados na jaula do lar. Ligue-a, se for incapaz...  


domingo, 15 de maio de 2016

Um Homem no Espelho


 A escara do tempo. 
 Algumas décadas de hemostasia, colágeno em exercício. 
 Sobre a pele, marcas do que não se foi, ao redor do mesmo olhar de sempre. 
 Ele em fase de depuração ampla, geral e irrestrita, anistiando a si mesmo. 
 Jogou todas as culpas fora, ficou tão leve quanto pensamentos de algodão. 
 Um processo delicado, 
 envolvendo procedimentos de várias naturezas artificiosas que rondam a humana. 
 Papel de todos, alguns chamam isso de dever. 
 O grão-mistério, é saber colocar em prática tal aprendizado, 
 sem que o tempo se faça de corrente, obstáculo. 
 Ele decidiu, foi e não mais voltou. 
 Tem algumas coisas em seu bagageiro. 
 Retratos do passado, instrumentos do presente e absolutamente nada para o futuro. 
 Pretende construir lá, as coisas novas que imaginou aqui. 
 Sorriso escondido atrás do desamor, fazia aparecer só a metade quando se iludia. 
 A ilusão é uma infância prolongada, ele concluiu uma vez. 
 Só mesmo os ingênuos acreditam na felicidade plena. 
 Pois se fosse plena, eles nem precisariam acreditar, ou ter referenciais de fé. 
 Um arco-reflexo, indicava reconhecimento de saúde. 
 Veículo apropriado para fazer da próxima segunda-feira, um anteparo humano. 
 Chega de vidros de areia, castelos de areia, mulheres de areia. 
 Ele quer é andar sobre a areia. 
 Andar descalço. 
 E se ainda houver um rastro de pegadas femininas pelo caminho, que ele não vá atrás. 
 Que ele continue fazendo daquele sentido, o seu caminho interno, um destino bem cumprido. 
 Ele nunca foi dado a espelhos. 
 Sempre houveram vazios ao redor de sua imagem. 
 Estefano não precisa ver para crer: 
 ele nunca deixou de sentir isso... 





Contos dos Bookmakers




Balcão de Apostas 
Solidão. Grandeza de natureza par, total, completa. Não admite parceiro. Andrógina, hermafrodita, completa-se em si e apenas nela. Tanto, que nem importa o sexo, alheio. Há uma repulsa natural à aproximação, à percepção do outro, pela nula recepção dos estímulos vindos de fora. Eles são descartados na avenida, sequer chegam ao portão de casa. Na grade da pista do Jockey, ele olhava o movimento dos animais, da apresentação, passando pelo cânter até as corridas propriamente ditas. Olhava o esporte, como entretenimento solar e dominical. Elas chegaram bem perto, filmando e fotografando cavalos que desfilavam a dois metros dali. Entre selfies e jogadas de cabelos munidas a comentários fúteis sobre o turfe, permaneceram um tempinho ao lado dele, quase coladinhas. Bonitinhas, quem sabe ordinárias. Ele ouviu e não aceitou o convite sui generis para o bate-papo, continuou calado. A mais ousada, encostou o braço no antebraço dele. Ele saiu pela tangente, discreto. O insucesso, ou a indiferença do homem, afastou as mulheres ali da relva. Educadamente, ele girou o olhar para ver de quem se tratava. Arrumadas, ainda não balzaquianas, buscavam admiração na turba. Do lado esquerdo, uma garota de uns vinte anos, beleza exótica, feito indiana, uma íris que fazia inveja ao mais lindo dos verdes mares. Profissional, ele concluiu. Também depois de um tempo, ela foi trotar noutro lugar. Após três corridas, ele foi embora dali. Tranquilo, mesmo lamentando o espírito selvagem do ambiente, onde pessoas aproveitam-se da aglomeração para trabalhar seus interesses, pelo instrumento dos seus corpos. O mundo anda tão complicado, que os corações sozinhos estão apelando para as solidões alheias. Tolos, não sabem eles que para quem é solitário, não há pista. Não tem apresentação, cânter, corridas. A concepção da vida é outra. Não seriam mil e duzentos metros, tampouco dois mil metros percorridos que se permitiria chegar ao pódio. É quase uma ofensa considerar que a solidão possa sucumbir a qualquer investida, perfumada, decotada, erotizada, arriscada. Como é bom chegar em casa e não ter que dar satisfações a quem precise de você só para suprir necessidades, carências ou vontades de emparelhar partidores a fim somente de cruzar a faixa final acompanhado...  


Crônica Cotidiana 30



Um Colo 
O frio da manhã, a mãe e a filha a pé na calçada na quadra do hospital. A pequena no colo da moça nova. Acelerei um pouco, queria ver seus rostos antes do sinaleiro. Elas sorriam no entreolhar dos mais lindos que eu já não via. Ela contava alguma coisa para a menina, que parecia não ser princípio de inverno. Eu vi calor. Era o amor. Eu vi o amor. Chorei feito um tímido, disfarcei feito ator. Aquilo me invadiu de tal forma, que perdi minhas respostas sobre a vida, percebendo que minhas perguntas são mais vãs do que qualquer sociologia. Se era a raridade do momento ou não passava do meu tempo comum, minha reação. Um pouco dos dois, a justificativa emprestada de mim mesmo, costume que temos diante das incertezas. Mas não me apeguei muito nas razões, diante de tal emoção ali naquela cidade, ali na rua. Onde estaria o pai, é uma coisa que me vem à cabeça desde pequeno, quando perdi o meu, sempre fico imaginando onde estão os pais das pessoas. Não pude fotografar, o que ficou revelado e guardado em minha mente. Uma relação fraterna, frutífera, aquelas duas iriam viver inúmeros momentos iguais ou melhores na vida. Parecia não haver diferença de idade, uma comunhão entre dois seres afins. Pena que esse tipo de coisa ocorra mais entre parentes, os não consanguíneos deixam a desejar. Joyce trazia Joana de uma consulta, o clima tentava presenteá-la como uma pneumonia. Medicada, estavam indo ao ponto de ônibus para retornar à sua casa. Lá, o pai estava lavando o carro. A mãe era independente nas suas atitudes, mas ainda presa ao modelo conjugal. Joaninha cresceria sem jamais saber quem o pai era para a mãe. Esta, fez questão de não contar tais detalhes, os quais negava serem fundamento. Coisa rara, pessoas mantendo ética sobre as relações, sem interferir na opinião alheia. Uma ciência jurídica em desuso ultimamente, chama o contrário disso de alienação parental. Então, uma vez existente, vão aos tribunais requerer reparações. Não era preciso que a pequena hoje grande soubesse do pai pelos autos. A intuição, demora mas não tarda a responder aquilo que, por vergonha, nunca foi questionado...  


quinta-feira, 12 de maio de 2016

Nota de Falecimento - 11 de maio de 2016




Um coração metropolitano. Pulsa, com ligeira disritmia, só porque a vida é uma grande chance. Despertar às cinco horas e trinta minutos da manhã, sem aviso, para começar um novo dia velho. Mas quando saio lá fora, percebo que a neblina toma conta da cidade, através de dois órgãos dos sentidos. O estômago vazio ferve a pouca bile que contém. Um cheiro inexplicável de enxofre, misturado com amônia, invade os organismos de convivência matutina. Uns, ignoram pelo hábito. Eu, revolto-me comigo mesmo. Um município desse porte, sucumbe à névoa cortina que deita sobre a terra de cimento, fazendo circular gases inodoros como se estivéssemos inalando uma coluna inteira da tabela periódica dos elementos, sem nobreza alguma. A química do homem, deteriorando seu físico. Não adianta abrir as janelas, o odor já se instalou na mente. Os pulmões resistem mais do que o coração, trabalhando arduamente para assimilar toda essa chuva ácida em forma nebulosa. Precipita sim, até sobre nossas consciências. Uma poluição que afeta o futuro. Enquanto meu amor virou inodoro, a podridão dos homens públicos aquece a degradação da democracia, sublimando as esperanças, numa atípica reação química onde o soluto somos nós, o povo. O povo, do lado de fora da própria sociedade... 


terça-feira, 3 de maio de 2016

DI - MENÇÃO




"Heal The World" - Michael Jackson
by Dziemian/Simon/One Violin Band



Flash Imobile



 Crédito ou Débito? 
Ela gostou da voz dele. Mas não era bem isso. Moça do caixa da padaria, feita um solzinho naquela capital fria, aquecia o impossível daquele senhor que ali frequentava. Quase todos os dias, uma rotina que virou costume, sem traços de tradição. Ambos, estenderam-se no tempo, aproximando-se sem saber por que. Era a jovialidade dela, versus a experiência dele. Um misto de educação, cordialidade e urbanidade, que não é tão comum por aí nas cidades. Enquanto ela sentia cócegas nos ouvidos diante de um bom dia, ele tinha a mesma sensação nos olhos ao sorriso dela. Quando as coisas acontecem sem interesses, a dimensão é tão distante, que fica difícil até de escrever. Veio um e disse que ela não tinha pai, e por isso encarinhava-se pela presença do velho. Foi o mesmo, sabe-tudo, que afirmou ser a solidão dele a razão da estorinha. Talvez isso seja ternura. Ou quem sabe, não seja nada e pelo fato de que o mundo anda tão complicado, isso parece ser algo, em razão da diferença de estar das coisas. Dois seres humanos, um tempo no meio, quase duas gerações de intervalo. Mas ali, ali na frente daquele caixa, o espaço derrotava as horas, por nocaute existencial. Ela lhe perguntava alguma coisa, ele respondia, numa troca de suavidades que pareciam navegar em mar de Almirante. Nada corporal, carnal ou erótico como poderia concluir o mais ávido e banal dos superficialistas, um outro sábio-mor; era apenas uma leva humana, mútua sensação de bem-estar. Dessas que se desenvolvem sem a conotação do sexo, da procriação, do animal que há em todos. Nem se pergunta o que havia nela, que lhe aprazia, e vice-versa. Familiaridade? Identidade? Repito, não se pergunta. Ainda insistimos em questionar aquilo que não tem resposta. Depois do pagamento, um olhar trocado com a força da inocência, do desapego, do até amanhã. Talvez ele fosse um pequeno luar para ela. A vida naturalmente preconceituosa impediu uma conversa, poderiam contar coisas, histórias, gargalhar, tudo em torno do afeto descompromissado. Ele foi embora, para sempre naquela quinta-feira, morreria classicamente de infarto após o almoço. Ela jamais ficou sabendo. Ele permanece vivo em sua memória, na prateleira das coisas que nunca viriam a acontecer... 





Poesia de bolso..