O Homem Let
Sua ligação com os galináceos
vem de outrora. Na tenra infância, lá no interior, já implicava com os caldos concentrados,
não admitia tanta redução assim. Aliás, não acreditava naqueles sabores
artificiais, sem saber que iria encontrar pela frente em seu tempo, muita gente
que se entregasse a isso, em vários sentidos além do culinário. Sentia prazer
ao ver o pai matando as penosas, embora não tivesse vontade alguma de fazê-lo. Sangue
sim, mas nunca em suas próprias mãos. Mas o negócio dele não era a carne de frango, mesmo com as saborosas refeições que a mãe preparava, principalmente a cabidela. Ele tinha
uma fixação pelos ovos, os ovos das galinhas. Toda manhã, ainda piazote, corria
lá no galinheiro e contava um por um, os recém-nascidos, invólucros alvos ou beges de
formato típico no reino animal. Não importava que eles chocassem mais tarde, trazia
alguns à mesa do café. Dez anos de idade, sentadinho, aguardava Dona Marta trazê-los
fritos da cozinha, uns quatro ou cinco, comia com pão caseiro. Sentia ali, naquela
oleosa refeição, a energia da vida, o combustível que o impulsionaria ao
futuro. Cresceu e virou jovem, tornou-se macho com as cabritas. Adulto, já não estava mais no mato. A cidade o
engolira sem sal. Ele polaco, seu casamento foi e deu-se com uma ucraína. A separação e a solidão chegaram
a galope soberano, marcado. A família dela pintava os ovos: outra boa razão para o divórcio. Rebentos com a ex, isolou-se numa chacrinha na região metropolitana
daquela capital insossa, o seu quase rancho fundo, tinha até uma vaquinha, era a vida fechando seu ciclo. Feito Pinduca, todos os dias, toda manhã, preparando e
se alimentando com os ovos. Hoje, já são dois ou três para cada vez. Talvez o corpo guarde
algumas marcas pelo excesso de proteína ou azeite, sem problemas, porque ficava
por dentro e por dentro é que a gente esconde tudo. Albuminas, aminoácidos,
desconhecia muito tudo isso. Foi a terceira idade que definiu em palavras, a razão
pela qual Ari Carlos Svolinski atravessou a vida entre claras e gemas. Ele tinha um
credo, uma tese, uma coisa mística que o levava ao ritual matutino de sempre. Nunca
soubera explicar, mas ficou evidente só agora, quando não tinha mais ninguém
para ouvir: para ele, o amor estava no ovo. Não o amor de uma mulher, de uma
pessoa, mas tipo o sentido da vida. Comer ovos significava renascer, renovar-se,
justificar seus dias e preparar-se para as suas noites. Os ovos caipiras então,
quanta diferença. Em sua geladeira, as dúzias compensavam a ausência de
pessoas por perto. Disso, concluía independência, autonomia e todas aquelas
coisas que não temos quando estamos acompanhados. Não precisava de alguém, “o
amor estava no ovo”, feito princípio, essência, força motriz. Tem gente que faz isso com o trabalho. Com os filhos. Com um passado, um lugar, um jardim, um hobby, pinga, chocolate, a estrada. Até com
seu patrimônio. Arranjamos explicações para acordar na manhã e ter motivos
para o movimento. Com o tempo, a frigideira ficou minúscula, redondinha, cabia
um ovo por vez, sempre o mesmo desenho, coisa de especialista, pós-doutorado. Bordas levemente queimadas, um centro que se derramava em ouro ora sobre o pão, ora sobre a farinha,
também sobre o arroz. Omeletes? Jamais, misturar ingredientes seria uma ofensa
à natureza. O cheiro de ovo frito pela casa...aroma de paixão, perfume sem mulher, bálsamo de felicidade. Assim era o seu amor, queimado nas pontas e um tanto cru no meio.
Ele inventou que aquilo era o amor. Ele não sabia amar. Assim somos nós também. Passamos a vida inteira a inventar belas estórias ciscando em volta de sentimentos crus...
Nenhum comentário:
Postar um comentário