sábado, 27 de junho de 2015

Tributo a um Estranho




Oi. Guardo por aqui algumas palavras que não lhe direi. Assim como eu, elas não têm lugar em espaço algum ao seu redor, nunca tivemos. Inicio pela conclusão final: eu sempre respeitei a sua escolha. Podemos mudar o mundo, mas não a escolha de cada um. Seu caminho era vicinal, desde cedo, afastando-se do núcleo familiar. O entorpecimento de sua liberdade, deu-lhe asas para bem longe dali, do lar. A ação química atingiu substancialmente deteriorando a região cerebral responsável pelo afeto, juntando isso ao seu livre arbítrio, deu no que daria, inevitavelmente. Protegido pelo pai, em tantas situações, você tinha determinada liberdade para se soltar além das amarras que não tinha. Mas eu lembro algumas coisas. Quando por exemplo você não ia para a aula e pedia quase perto da hora do almoço para eu ir buscar o jornal na casa da avó. Quando a gente batia um futebolzinho de “três sem cair” no portão como gol.  Quando você me levou com seus amigos para a Ilha do Mel, paraíso que se tornou o laico santuário da minha juventude careta. E quando você me enviou alguns cruzeiros uma vez que passei fome na Marinha. Mas foi só. De lembranças boas, mais nada. Uma intermediária, no dia em que o pai faleceu, eu demorei a lhe encontrar, queria lhe dar um abraço e pedir para você me ajudar a terminar minha adolescência sem pai. Eu não queria que você fosse meu pai, apenas queria alguém mais velho a me orientar. A demora a lhe encontrar naquele fatídico dia, era um presságio: nós não seguiríamos juntos na continuidade da vida. Então, eu me recolhi. Você aprontava, me ensinando sem querer que o mundo deveria ser o seu contrário. Sua eterna alegação de ser “cabeça-feita”, não interferindo em nenhuma decisão que a família precisasse tomar, demorou a chegar em minha consciência como omissão. Depois disso, uma omissão pela ausência de vontade de sua parte. Enfim, tudo isso houve de ser compreendido, engolido a seco, mesmo sem digestão. Tardou um pouco, mas suas asas foram ganhando tamanho e força, através do trabalho. Reconhecido foi o seu valor profissional, o que não afastou a desvalorização que você fez de nós todos. Mundo das opções, vontades, seguimentos divergentes. Paralelamente, e principalmente em relação a mim, prevaleceu seu caráter de operador do Direito: acusou, julgou e sentenciou-me sem contraditório nem ampla defesa. Uma fofoca ali, outra mentira acolá, foram suficientes para que você me isolasse por definitivo de sua convivência. E dizem que a pior morte é daquilo que continua vivo, é mesmo. Certa vez, combinei um papo em sua casa, para conversarmos algo importante em relação à mãe. Você não foi. Você havia desistido de nós, há muito. Paradoxo, sua única escolha me envolvendo, foi de padrinho para sua filha, impedida de conviver conosco e doutrinada ao isolamento e distância que você estabeleceu na sequência. Nem me convidaram para a festa de 15 anos dela: eu tenho uma sobrinha que eu nunca pude ter. Inteligente a sua menina, vejo nela uma boa conversa e um futuro promissor, ao mesmo tempo em que sinto que ela não me considera um tio. Contraste, fruto de sua orientação segregadora para conosco. Novamente, a necessidade de reconhecer escolhas. Como se fôssemos todos frutos passados em uma barraca de feira, a minimização de relações parentescas em prol do estigma inventado sem argumento, propriedade ou fundamento. Sinto muita pena de minhas filhas não o sentirem como parente, mas ensinei bastante a elas sobre as coisas de rejeição.  De lá para cá, você não consegue me olhar nos olhos. Cabeça baixa, desvios, comportamento defeso como se eu fosse um meliante na iminência de um ataque de toda e qualquer natureza. Então, meu caro, vim aqui para registrar que não é questão de perdão, posto que não sou religioso. É somente um desabafo, na catarse de exteriorizar um pensamento que se consolidou pela morte de um sentimento, provocado pela sua livre e espontânea vontade. Aquelas substâncias, liberam os centros frenadores do organismo: naquela outra fatídica noite de carnaval na Ilha, você revelou o que não sentia por mim. A violência é uma de suas marcas características. Não conseguiu a física naquela oportunidade, mas conquistou a violência do silêncio, da lonjura, da mudez, da descompanhia no curso do tempo. Tudo em razão de uma condenação extrajudicial, arbitrária, baseada em depoimentos de testemunhas, a mais prostituta das provas. Quem diria, meu caro, um Bacharel processar um parente próximo nestas condições, hem? Mas eu não levo comigo rancor, mágoa, ressentimento, ódio, raiva ou outra coisa dessa natureza. Só porque foi escolha sua. Até hoje torço por você, da mesma forma que fiquei em casa torcendo pela sua sobrevivência quando você se acidentou de carro. Nunca rezei tanto na vida, recém tínhamos perdido o pai, eu não admitiria perder você. Eu, um ser não religioso, quem diria. Mas o perdemos de outra forma. Melhor assim. Assim, quando lembro de você eu lhe envio todos os votos (não vencidos) de felicidade que não pude lhe dizer oralmente. Nunca pense que eu fui indiferente em relação à sua vida. Minha indiferença, estabeleceu-se no sentido de nossa convivência. Você e a mais velha, não gostavam de mergulhar em assuntos profundos. Por um lado, foi bom, pois me poupou de ouvir de sua boca aquilo que você sempre demonstrou em relação a nós: desprezo. Para mim, não foi um problema, já que sou forte: lamento seu distanciamento de nossa mãe, pois ela ainda precisa de você. Menos mau ele estar no ar da história, do que chegar pela exposição de suas palavras. Todo esse nada de sua parte, e eu jamais lhe condenaria. E jamais eu me disporia a uma rescisória, em função do meu respeito. Seus motivos para me ignorar foram adubo suficiente em seu campo da descobertas, formando seu livre convencimento: cumpra-se. Doutro lado, mas bem longe, é o que me cumpre participar. Pois se eu não tivesse a fraternidade como valor, eu agiria tal qual você. Orgulho pelo seu sucesso profissional, coladinho com o lamento pelo fracasso relacional. Pena que não compartilhamos juntos nosso maior amor: o Atlético. Em seu lugar na prateleira de meu passado, há um livro incompleto, abandonado logo após os primeiros capítulos. A capa era bonita, tinha essa foto aí em cima, tempo em que você olhava pra mim e sorria. A vida não faz isso com a gente, nós é que fazemos isso com a vida. Sério: seja feliz, homem. Mesmo que eu tenha, por consideração à sua discricionariedade, perdido a chance de lhe chamar de Irmão. 


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