segunda-feira, 29 de junho de 2015

Contos de Domingo




Tarde da noite. O carnaval era arredio para aquela gente, tempo de fuga para bem longe do planalto que substituía marchinhas por zumbis e pagodes por psicodelismo. Um sábado, já na madrugada de domingo, na casa de esquina de um bairro próximo ao centro, onde restou apenas um cão velho a ladrar no vazio soturno da lua encoberta. Dois, um permaneceu no carro e o outro pulou o muro. Um silenciador na ponta da pistola paraguaia surpreendeu a marginária classe e funcionou na fronte do pobre animal quando ele partiu para cima do meliante. Ninguém viu nem ouviu que o sangue daquele Cane Corso coloriu a superfície das lajotas do pátio dos fundos, fazendo rios dos rejuntes. A luz intermitente, insuficiente para caracterizar presença. Uma lâmina cortou um vidro, que estourou o ingênuo cadeado de uma porta lateral qualquer da residência que não tinha alarme só para não alimentar o mercado que mais houvera crescido nos últimos anos, o da segurança privada: novas vítimas para uma resistente ideologia. A pequena lanterna do invasor de lares descuidados iluminava o piso vinílico. Foi direto ao quarto, onde deveriam estar os valores mais protegidos. De repente, o susto do ladrão: no chão, à frente da cama, uma mão humana cortada e ainda, lentamente, pingando sangue no tapetinho aos pés da cama de casal. Olhou em volta, nada que justificasse aquilo. Tinha uma mão no meio do caminho do ladrão. Num país árabe, distante dali, era o que faziam com os assaltantes. Mas ele não sabia disso. O cheiro morno da hemoglobina sódica aquecia as narinas do pasmado vigarista. Não havia o restante do corpo, procurou sem sucesso. Eis que ele sentiu uma respiração vinda de dentro do closet. Então, ouviu o característico engatilhar de uma 9mm. Hesitou. Tremeu. Calou, o covarde. Pensou que se desse um passo para qualquer direção, a bala o atingiria sem pestanejar. Sua sobrevida entrou feito um carrossel em sua mente. Coisas da hora da morte, isso ele sabia. Os vinte anos de favela, os dois assassinatos, o latrocínio do arquiteto, a imunodeficiência contraída no cárcere, a violência com a própria amada, a desqualificação, o desemprego, a corrupção generalizada. Aquela sociedade toda, haveria um dia de se suicidar. Ele nunca teve nada a perder, já que nunca tivera nada. a reinserção social como objetivo da pena era tão absurda quanto as justificativas que os governantes têm para direcionar orçamentos anuais ao erário público. Reinserir quem jamais fora inserido uma única vez. Novelas que saem da programação e invadem as gestões dos maus administradores. E o filme continuava. Seu filho bastardo em Santa Catarina, o pai entregue ao crack, a mãe alcoólatra, três irmãos mortos pela PM no assalto à lotérica. Seu currículo criminal virando páginas. Taquicardia, sudorese, tremores, reconheceu a hora de sua partida, o que não possibilitou às suas vítimas queima-roupa. Vinte e cinco anos em dois minutos, um clímax de rotações. José Maria enfim tombou sua última morte sobre a cama. Um tiro na boca ricocheteou na mandíbula e se alojou na occipital. O comparsa escafedeu-se após o estampido. A mão era um símbolo projetado pela sua inconsciência econômico-político-social. Amputada, significava a falta de elo entre o Poder Público e o cidadão. Tantos Zés-Marias formam-se a cada ano nas penitenciárias, porque a contemporaneidade não abandona o medievo. Medieval, é a capacidade dos homens públicos em combater a desigualdade social apostando e investindo recursos alheios em sistemas fracassados de correção. Como exigir moral, ética e sociabilidade, de quem não tem um mínimo desses valores? O Governador, naquele exato momento, limpava suas narinas e o pênis ao fim de mais uma festa regada à cocaína e menores de idade no interior do Estado, pensavam que ele estava no litoral: o discurso. Políticos discursam para uma população representada pelos três macacos. Os exilados da Capela ainda não conseguiram evoluir politizações. É a democracia se encaminhando para o serviço de pronto socorro. Somos, todos, zumbis melhorados. E ainda displicentes diante dos feriados, também das urnas. É urgente contextualizar. Por isso, é muito difícil saber votar... 

 - Ô moço! Quem atirou? 
 - Não sei, minha senhora. Só sei que era um eleitor... 





Nenhum comentário:

Postar um comentário