Tarde
da noite. O carnaval era arredio para aquela gente, tempo de fuga para bem
longe do planalto que substituía marchinhas por zumbis e pagodes por
psicodelismo. Um sábado, já na madrugada de domingo, na casa de esquina de um
bairro próximo ao centro, onde restou apenas um cão velho a ladrar no vazio
soturno da lua encoberta. Dois, um permaneceu no carro e o outro pulou o muro.
Um silenciador na ponta da pistola paraguaia surpreendeu a marginária classe e
funcionou na fronte do pobre animal quando ele partiu para cima do meliante.
Ninguém viu nem ouviu que o sangue daquele Cane Corso coloriu a superfície das
lajotas do pátio dos fundos, fazendo rios dos rejuntes. A luz intermitente,
insuficiente para caracterizar presença. Uma lâmina cortou um vidro, que
estourou o ingênuo cadeado de uma porta lateral qualquer da residência que não
tinha alarme só para não alimentar o mercado que mais houvera crescido nos
últimos anos, o da segurança privada: novas vítimas para uma resistente
ideologia. A pequena lanterna do invasor de lares descuidados iluminava o piso
vinílico. Foi direto ao quarto, onde deveriam estar os valores mais protegidos.
De repente, o susto do ladrão: no chão, à frente da cama, uma mão humana
cortada e ainda, lentamente, pingando sangue no tapetinho aos pés da cama de
casal. Olhou em volta, nada que justificasse aquilo. Tinha uma mão no meio do
caminho do ladrão. Num país árabe, distante dali, era o que faziam com os
assaltantes. Mas ele não sabia disso. O cheiro morno da hemoglobina sódica
aquecia as narinas do pasmado vigarista. Não havia o restante do corpo,
procurou sem sucesso. Eis que ele sentiu uma respiração vinda de dentro do
closet. Então, ouviu o característico engatilhar de uma 9mm. Hesitou. Tremeu. Calou,
o covarde. Pensou que se desse um passo para qualquer direção, a bala o
atingiria sem pestanejar. Sua sobrevida entrou feito um carrossel em sua mente.
Coisas da hora da morte, isso ele sabia. Os vinte anos de favela, os dois
assassinatos, o latrocínio do arquiteto, a imunodeficiência contraída no
cárcere, a violência com a própria amada, a desqualificação, o desemprego, a
corrupção generalizada. Aquela sociedade toda, haveria um dia de se suicidar.
Ele nunca teve nada a perder, já que nunca tivera nada. a reinserção social
como objetivo da pena era tão absurda quanto as justificativas que os
governantes têm para direcionar orçamentos anuais ao erário público. Reinserir
quem jamais fora inserido uma única vez. Novelas que saem da programação e
invadem as gestões dos maus administradores. E o filme continuava. Seu filho
bastardo em Santa Catarina, o pai entregue ao crack, a mãe alcoólatra, três
irmãos mortos pela PM no assalto à lotérica. Seu currículo criminal virando
páginas. Taquicardia, sudorese, tremores, reconheceu a hora de sua partida, o
que não possibilitou às suas vítimas queima-roupa. Vinte e cinco anos em dois
minutos, um clímax de rotações. José Maria enfim tombou sua última morte sobre
a cama. Um tiro na boca ricocheteou na mandíbula e se alojou na occipital. O
comparsa escafedeu-se após o estampido. A mão era um símbolo projetado pela sua
inconsciência econômico-político-social. Amputada, significava a falta de elo
entre o Poder Público e o cidadão. Tantos Zés-Marias formam-se a cada ano nas penitenciárias,
porque a contemporaneidade não abandona o medievo. Medieval, é a capacidade dos
homens públicos em combater a desigualdade social apostando e investindo
recursos alheios em sistemas fracassados de correção. Como exigir moral, ética
e sociabilidade, de quem não tem um mínimo desses valores? O Governador,
naquele exato momento, limpava suas narinas e o pênis ao fim de mais uma festa
regada à cocaína e menores de idade no interior do Estado, pensavam que ele
estava no litoral: o discurso. Políticos discursam para uma população
representada pelos três macacos. Os exilados da Capela ainda não
conseguiram evoluir politizações. É a democracia se encaminhando para o serviço
de pronto socorro. Somos, todos, zumbis melhorados. E ainda displicentes diante
dos feriados, também das urnas. É urgente contextualizar. Por isso, é muito difícil saber votar...
- Ô moço! Quem atirou?
- Não sei, minha senhora. Só sei que era um eleitor...
- Ô moço! Quem atirou?
- Não sei, minha senhora. Só sei que era um eleitor...
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