quinta-feira, 4 de junho de 2015

Crônica Cotidiana 20



RABECÃO DO AMOR
O carro fúnebre. A viatura mortuária. O leva-ataúde. Carruagem de ossos, táxi do além, perua da decomposição, delivery-presunto. Branca, a cor da condução da morte, ignorando o motivo pelo qual se deu. Trafegava descontrolada subindo a Marechal Deodoro, em direção à Victor F. do Amaral, o cara da maternidade: paradoxo. Sob o viaduto da garapa, nas vizinhanças da empresa pública com ações marselhesas, fazia curvas um tanto preocupantes aos vizinhos de tráfego. Um letreiro na porta anunciava estar servindo à prefeitura da cidade. Dificilmente o motorista estaria bêbado naquela hora da manhã. Um pensamento imediato partiu de dentro daquele funesto carro e chegou a mim: o caixão também se encontrava em movimento. Estaria o morto arrependido de ter morrido e com vontade de voltar? Deixou algumas coisas pendentes, precisava arrumar tudo direitinho antes de subir em definitivo, decerto. Alguns recursos, orientar destinação, talvez. Ou então, dar um abraço naquele amigo esquecido, fazer as pazes com um parente desgarrado, mandar tomar no cu aquele vizinho desgraçado. Coisas que sempre deixamos pra depois, acabam virando nunca, muito antes do punhal do tempo reluzir seu brilho na mais fresca lápide do Municipal, à sombra dos cedrinhos verdinhos, tão fofos quanto o forro do esquife de madeira pago no cartão de crédito por quem gostava do de cujus. Aquele cadáver, mesmo já sofrendo ação de fungos e bactérias específicos que já o habitavam, tentava em vão reverter o curso natural de sua ex-jornada. Alguma religião sugeria ressuscitar ali mesmo, não custava tentar. Ele ainda não havia dito para uma determinada mulher, que a amava em silêncio, mas era amor mesmo. Um amor que não viveu quando em vida. Se era amor e não viveu, já sofria decomposição, ao menos parcial. E se ela for ao velório, chorar ao lado do caixão atrás dos óculos escuros, o que ele deveria fazer? Reencarnar no mesmo corpo assustando todos a ponto do segurança do cemitério dar um tiro em seu peito? Tarde demais. O pior é que bem antes deste dia, já é demasiadamente tarde para fazermos coisas que protelamos ad aeternum. Joelmir não tinha desafetos. Um filho bastardo em Santa Catarina iria saber de sua morte quatro anos depois: não reconhecera o produto de uma relação sexual em miniorgia realizada num churras com a galera da faculdade onde era professor de Sociologia quinze anos atrás, ejaculara dentro da aluna ovulante. A viúva, estava livre para partir em busca frenética do amante que a desprezaria em duas semanas, porque todo amante elevado a categoria de companheiro, tem prazo de validade por se tornar perecível quando assume. Sem filhos conjugais, o corno ativo debatia-se no camburão do diabo, por não ter aproveitado sua vida em vida. Vai ver que era isso mesmo. O motorista estava no celular, discutindo um seguro de vida expirado. É muita gente desprezando o tempo. Parece que tudo cabe no amanhã. Desde uma reconciliação até um adeus bem dado. De um abraço a um aceno, de um tchau a um carinho, de um papo a um desabafo. De um esclarecimento a uma revelação. De uma verdade a outra. Aproximações. Coisas do Brasil. Padecemos imaginando que todo tempo é anil, todo espaço é verde, todo valor é ouro e toda relação é branca, tudo isso independentemente de nossos erros, omissões ou desatinos. Não é a morte que limpará nossas obrigações não cumpridas. É muito difícil reconhecer que há nova chance em cada amanhecer, e pior ainda é reconhecer a chance que perdemos hoje. Entender que a vida é um trânsito, onde havemos de bem nos conduzir: todo destino é mesmo destino, mas passa antes pelas nossas mãos. Soraia nem foi ao funeral dele. Ela, colega de trabalho, não sabia que ele a desejava. Foram educados demais para com os respectivos cônjuges que escolheram para trafegar juntos, mesmo sem ir para lugar nenhum com eles. Mas foram silentes com suas próprias vontades; ela o recepcionaria muito bem, se soubesse a verdade, talvez fossem felizes. A morte, não ocorre só no dia da morte. Muita coisa nessa vida, falece antes de viver: morrer, é apenas uma cereja no asfalto... 




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