sexta-feira, 5 de junho de 2015

Contos sobre Descaminhos



LIQUEFAÇÃO 
Ela queria chorar um pouco. Não precisava muito, alguns minutos seriam o suficiente. Há muito que não fazia isso. Havia motivos, mas parece que nunca era hora. Sempre aparecia algo, alguém ou outra coisa impedindo. Um intervalo no tempo, se fazia necessário. Não que ela curtisse isso, mas feito desabafo. Para si mesma, relaxando sua permanente tensão física de controlar emoções feito dique, comporta, usina. O rio da vida tinha que seguir seu curso. Na altura dos seus olhos, ele haveria de continuar. Então ela foi para o quarto noturno, apagou todas as luzes, fechou a porta e enfiou-se embaixo das cobertas de solidão e cobriu-se de outono. Frio que se aproximava, o choro também, com ele algum calor que vinha do exercício da musculatura da face, contraindo para libertar lágrimas contidas. Assim, ao menos eles não atrofiariam. Pensou na vida. Em tudo o que ela teve, sentiu e quis. Espécie de profecia, que levaria caso fosse alcançada, à solução do mistério de ser humano. Uma vez, deixou uma pergunta dessas sobre a calçada para alguém determinado. Ela não soube onde foi parar aquela questão. Então, de lento passou a moderado. E deste, a intenso. O pranto tomou conta do cômodo da casa, do ambiente da vida. Já nem levava as mãos aos olhos, a face banhava-se como cascata em véu. Não se incomodava que não houvesse ninguém ao lado para dividir solidão. O problema era a perspectiva nas relações, de toda natureza, ela sentia dificuldade em mantê-las. Seus valores falavam mais alto que qualquer submissão, omissão ou recuo. Íntegra, mas sozinha. Moral, mas isolada. Ética, mas confinada de emoções. Chegou a pensar se valeria a pena preservar tudo aquilo que a tinha constituído como pessoa. Afinal, perdeu tanto por isso...não. Bastou chorar mais um pouco, que fez concluir retidão: não devia nada para ninguém. Vinte minutos passaram-se, o relógio marcava uma da manhã. Pronto, o alívio demorado. Tinha de levantar às seis. Um pouco antes da alvorada. Um pouco antes do sorriso. Chorar, é bom, mas é melhor quando precede um sorriso. Por isso existem as noites. Os luares, o breu, o cinza e os travesseiros: equilíbrio. Quem sabe um dia, ela possa contemplar a lua, coisa que só admitia a dois. Quando sozinha, admirava-a. Mundo de sinônimos, antônimos sentimentos. A dor de cabeça matinal foi superada pelo café. O vazio no peito, pela luz do dia. O silêncio ao lado, jamais calará. Mas ao lado da Campina do Siqueira, há um belo parque. As pessoas ouvem-se por lá. Quando não pela voz, é pelo sentido de caminhar...


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