Deixando a
profundidade de lado, onde em geral mergulham os seres ao encontro de suas
abissais convicções, imaginemos a próxima existência (pulei o “se houvesse”,
para dirimir as divagações religiosas que tentariam nadar junto nesse texto).
Existe e pronto. Ao menos, para embasar esta minificção. É certo que não se
pode levar nada daqui para lá, exceção feita ao legado, que é o nosso
aprendizado. Falo das lições que colocamos em prática, o exercício daquilo que
aprendemos, pois há muita diferença entre o saber e o fazer. Fulano sabe que
precisa de uma dieta, mas ainda não começou. Beldrana (eu prefiro com D pois
com T é pouco polaco ou enjoa) sabe que precisa falar com uma determinada
pessoa, mas ainda não a procurou. E Ciclana (eu prefiro com L pois com R é
muito italiano ou engorda) sabe que não o ama, mas ainda não terminou a
relação. Voltando ao futuro, estamos quase chegando lá.
A primeira
curiosidade, é saber onde será. Sim, vem antes da família na qual
desembarcaremos. Uns querem a praia, outros Paris, há os que preferem o pampa
e outros demais paraísos, mas a maioria mesmo vai para a puta que o pariu. Provavelmente, num lugar diferente do de hoje,
pois o objetivo da coisa cósmica é justamente aumentar o aprendizado, no mínimo as chances para transformar o saber em fazer. Não se pode aprender outras
coisas numa mesma faculdade. E põe diferente nisso. Você não reconhecerá
ninguém (perderia a graça), mas outros sujeitos que conviveram próximo ou
colados à você, estarão disfarçados de outros sujeitos, e se posicionarão de
acordo com o ensino, 'paratodos'.
Quem serão seus
pais? Você os terá? Irmãos? Avós? Família? Dentre os zilhões de possibilidades,
suponhamos que não. Você, desta vez, foi fruto de uma relação sexual (todos,
sempre somos) de carnaval, onde sua mãe estava bêbada e um vagabundo qualquer
se aproveitou dela, ela lembra vagamente a face do facínora, que livrou-se dos
espermatozoides e da pensão 'parasempre'. Aliás, os gametas masculinos estão enfraquecendo,
não apenas o cromossomo Y do homem, mas também perdendo o agudo acento (com C). Não
obstante, engravidam.
Sua mãe é atendente
de telemarketing. Ganha dois salários mínimos numa cidade na região
metropolitana de Buenos Aires. Você, bela gringazinha, de olhos
verdes, uma boneca de carne e osso. Chucky a estraçalharia de inveja. Natalia,
a mamãe, mora com sua vó doente numa quitinete que lhe toma 1/3 do salário para
o aluguel, complementado pela pensão da vovó. Você nasceu fofa e empobrecida.
Seu país (ou Estado) não lhe fornece auxílio além de uma creche pública em seu
bairro, onde as crianças vivem contraindo gripes e outras viroses, porque preferiram dar as mãos à mão invisível do livre mercado.
Sua família é de
outro extremo na região da Prata. Todos os amigos de sua mãe a rejeitaram em
função das dificuldades que já tinha, imagine agora. Mas ela é forte, resiste e
insiste em sua boa criação. Abdica de tudo e abandona o resto que lhe servisse
como lazer ou descanso, e passa o tempo todo a cuidar da filhota. Pelo destino, não foi demitida após a gravidez. Aquele binômio sorte/azar, só existe na boca dos sem argumentação. Às sete da noite, saía do serviço e pegava
você na creche, onde lhe deixava também às sete da manhã.
E assim se passaram
os anos. De visita, recebiam uma colega do trabalho dela, e a mãe de uma amiguinha
que você fez na creche. Sua mãe desistiu de amar alguém. Depositou sua porção/disposição afetiva 100% em você. Após sobreviver a um surto de meningite, você acabou
ficando muito magrinha, porém, mais inteligente, isso aos oito anos. Nessa época,
começaram a chegar as perguntas, nem todas sua mãe conseguia lhe responder. Por
exemplo, os dias de festa na escolinha que você começou o ensino fundamental. Dia
dos pais. Você tinha, mas não tinha pai. Algumas crianças debochavam de você sem
saber o que era deboche. Quando não se recebe educação, fica impossível
discernir o que é certo e o que não é. Você voltava para casa triste, depois de
comer bolachas com água como refeição, e sua mãe apenas disse que ele havia ido
embora antes de você nascer, porque ele tinha problemas de cabeça. Natais a três, sempre mirradinhos, anos nada novos.
Você cresceu e
perdeu a virgindade com um namoradinho do bairro. Mas sua mãe bem lhe orientou,
você usava preservativo. E ela fez de você uma excelente pessoa, lutadora, íntegra,
virtuosa. Vovó faleceu aos seus 17 anos sem ver você entrar na faculdade, era o
último sonho dela. Mamãe, de tanto cuidar de vovó, teve câncer de mama e também
faleceu em um ano. Sobrou você, formada em Farmácia e Bioquímica, aos 25 anos,
trabalhando na rede de uma multinacional, ganhando 4 salários mínimos, e
morando ainda de aluguel numa casa na periferia. Duas amigas da faculdade a
visitavam. Você se sustentava, vida simples, sem lazer. E pronto.
Passada esta pequena
e imaginária incursão no amanhã, volte para cá e me responda algumas coisas, sem
a habilidade que sua mãe futura terá para lhe responder. Aqui e agora. Quem são seus pais?
Você os têm? Irmãos? Avós? Família? A quanto tempo você não vê um deles? Que não conversa
com eles, coisas importantes da existência. Ah, seu pai já morreu, me desculpe.
E sua mãe? Como você trata ela? Ela já é velhinha? Quem cuida dela? Não mora
com você? Você leva presentinhos, remédios, doces e flores de vez em quando?
Não? Mensagens, ah.... você manda mensagens... sei. Seu irmão não fala mais
contigo, vocês brigaram na infância e ele abortou-se da família: tudo bem, aí
não é culpa sua. E os seus filhos, onde estão? No celular, enviando mensagens,
o mesmo que você faz para sua mãe. Tá, né...
Lá ou cá, existem
coisas que sempre existirão. Pela ordem. Irresponsabilidade, pela vulgarização
das relações. Preconceito, pela falta de consciência do que seja alteridade.
Misoginia, pela supressão dos direitos femininos. Prevalência do interesse
privado sobre o público, pela mínima intervenção do Estado no social (escola, saúde, moradia,
trabalho, lazer). Indiferença, pela inversão de valores essenciais ao ser enquanto humano. O mundo, parece que não mudará.
Você, estará acolá neste mundo novamente. Não necessariamente vivendo sob as condições dessa hipótese, talvez
você nasça num hospital em Mônaco. Convenhamos, é quantitativamente difícil. Mas
sem especulações, fica uma dica. Repare em seu legado, o que você faz hoje em
dia, que você poderá tranquilamente fazer por lá.
O que até agora você aprendeu
de verdade, leitor(a)? E o que você deixará? Deixará como lição, como
lembrança, como afeto. Sim, agora mergulhe em suas convicções e diga à você
mesmo o que você consegue enxergar lá no seu fundo. Quem está por lá? O seu
pai de hoje? Ou quase ninguém, como será na próxima vida? Depois, vá para a frente do
espelho, a reconhecer quem você é neste momento. Na superfície do tempo. Reflita, nade,
boie, mergulhe. Até saber o que lhe falta como suprimento para uma boa
viagem...
Contraponto baseado na poesia de
Paulo Leminski:
“Para ALÉM da curva
da estrada
Talvez haja um poço,
e talvez um castelo,
E talvez apenas a
continuação da estrada.
Não sei nem
pergunto.
Enquanto vou na
estrada antes da curva
Só olho para a
estrada antes da curva,
De nada me serviria
estar olhando para outro lado
E para aquilo que
não vejo.
Importemo-nos apenas
com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante
em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para
além da curva da estrada,
Esses que se
preocupem com o que há para elam da curva da estrada.
Essa é que e a
estrada para eles.
Se nós tivermos que
chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos
que lá não estamos.
Aqui só há estrada
antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva
nenhuma.”
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