terça-feira, 14 de novembro de 2017

Crônica Cotidiana 55



Harmonia 
Outro doutor sem doutorado, chegava exausto em sua casa após um plantão agitado naquela terça-feira de gaze na terra e algodão no céu. Ao descer do carro, ainda com cheiro de sangue nas narinas, só pensava no banho obrigatório antes do repouso, tinha clínica à tarde. Subitamente, um sujeito parou em frente a casa ao lado, desceu e foi quase correndo na direção dele, perguntando muito educadamente se poderia abrir o portão de correr. Nosso homem da saúde hesitou por alguns segundos, achando que seria aquela uma nova modalidade de assalto. Mas respondeu que não precisava. O gentil voltou para o carro dele. O relógio marcava 07:25. A firma, ao lado, abriria às oito. Concluiu que aquele deveria ser um funcionário bem diferenciado. Mas não soube dizer o limite entre a cordialidade e a chatice. Não estamos acostumados com isso aqui, na capital das lagartas assassinas que não se demoram a se transformar em lindas borboletas, mas se multiplicam feito peixes em maricultura. Traçou um paralelo com os habitantes, viu que as fases eram opostas. Na face do trabalhador vizinho, sobrava jovialidade, e um tanto assim de ingenuidade, restava saber se ele sabia disso. O café do hospital era expresso, Rodrigo odiava qualquer alimento vindo de máquinas. Na padaria ainda não havia saído o pão de queijo, desanimado nem fez café, foi direto para o banho. Inusitadamente, a água quente lhe fez lembrar aquela conhecida que negou-se a ficar com ele por causa do calibre de seu membro, já que ele gostava, com ela, mais da contramão do que a via principal, reformada e muito estreitada por uma perineoplastia feita por algum cirurgião extremamente preventivo no quesito arrombamento: ela tinha medo porque para a retaguarda, ainda não tinha esse tipo de recurso plástico-terapêutico; elegeu os mais finos e longilíneos para companheirismo, o doutor “não se adaptou”, foram sete semanas de indecisão da parte dela, que adotou isso como critério para o fim do relacionamento. Rodrigo pensou, na confortável calmaria do chuveiro em ducha, qual o critério que as pessoas usam para estabelecer um critério que determine o fim dos seus relacionamentos. Ih, uma infinidade. Já viu gente que terminou por causa de luz acesa no quarto, causa de TPM, de cuecas pelo chão. Houve quem fugiu com a empregada, quem amancebou-se com o preceptor, quem descambou sua opção sexual para o sexo oposto. A fauna é diversa também no caráter comportamental. Aquela enxugada básica nos cabelos e sua boa King Size o acolheu, com a velha calça de pijama proibida de sair em público, uma ceroula modificada, nada de gaiola com porta, os pássaros precisam escolher, é de direito. E Rodrigo sonhou. Um sonho repetido. Que estava numa tarde de sábado na cozinha da casa dela, sua inspiração. Enquanto ela preparava trêmula o café no fogão, ele chegou por trás e lhe deu um abraço, juntando os corpos. Pediu-lhe que ficasse imóvel, afastou seus cabelos e percorreu o pescoço encostando de leve sua respiração, brisa sobre a pele, ela arrepiou-se toda. Chegou em seu ouvido, disse em voz rouca uma das frases mais simples e mais espetaculares – e infelizmente mal empregada em tantas vezes – que uma pessoa humana pode  construir: “eu quero o teu amor”. No sonho, a água ferve, ela desliga, mas não há café, eles terminam o sábado no quarto dela entre lençóis & travesseiros, risadas & êxtases, pelúcias & vinho. O que varia de sonho para sonho, é esse instante pós-revelação, quanto aos olhares, às vozes, aos beijos, agarros e etc. O certo é que banhos quentes e cafés, harmonizam com as vidas frias. Às 13:00 toca o despertador, ele se levanta com cuidado para não machucar o pássaro desperto horas antes. Mais uma vez, aquele sonho. A quarta vez no ano, ainda em agosto. Talvez, quando setembro vier, ele aprenda com a primavera que tal sonho, motiva-se justamente quando ele está acordado. Parece que a insônia, é o equilíbrio perfeito. Restaram a Rodrigo três perguntas. Qual a diferença entre sonho e realidade? Falta-lhe gentileza? As flores servem como critério?... 


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