Harmonia
Outro doutor sem
doutorado, chegava exausto em sua casa após um plantão agitado naquela
terça-feira de gaze na terra e algodão no céu. Ao descer do carro, ainda com
cheiro de sangue nas narinas, só pensava no banho obrigatório antes do repouso,
tinha clínica à tarde. Subitamente, um sujeito parou em frente a casa ao lado,
desceu e foi quase correndo na direção dele, perguntando muito educadamente se
poderia abrir o portão de correr. Nosso homem da saúde hesitou por alguns
segundos, achando que seria aquela uma nova modalidade de assalto. Mas
respondeu que não precisava. O gentil voltou para o carro dele. O relógio
marcava 07:25. A firma, ao lado, abriria às oito. Concluiu que aquele deveria
ser um funcionário bem diferenciado. Mas não soube dizer o limite entre a
cordialidade e a chatice. Não estamos acostumados com isso aqui, na capital das
lagartas assassinas que não se demoram a se transformar em lindas borboletas,
mas se multiplicam feito peixes em maricultura. Traçou um paralelo com os
habitantes, viu que as fases eram opostas. Na face do trabalhador vizinho,
sobrava jovialidade, e um tanto assim de ingenuidade, restava saber se ele
sabia disso. O café do hospital era expresso, Rodrigo odiava qualquer alimento
vindo de máquinas. Na padaria ainda não havia saído o pão de queijo, desanimado
nem fez café, foi direto para o banho. Inusitadamente, a água quente lhe fez
lembrar aquela conhecida que negou-se a ficar com ele por causa do calibre de
seu membro, já que ele gostava, com ela, mais da contramão do que a via
principal, reformada e muito estreitada por uma perineoplastia feita por algum
cirurgião extremamente preventivo no quesito arrombamento: ela tinha medo
porque para a retaguarda, ainda não tinha esse tipo de recurso
plástico-terapêutico; elegeu os mais finos e longilíneos para companheirismo, o
doutor “não se adaptou”, foram sete semanas de indecisão da parte dela, que
adotou isso como critério para o fim do relacionamento. Rodrigo pensou, na
confortável calmaria do chuveiro em ducha, qual o critério que as pessoas usam
para estabelecer um critério que determine o fim dos seus relacionamentos. Ih,
uma infinidade. Já viu gente que terminou por causa de luz acesa no quarto,
causa de TPM, de cuecas pelo chão. Houve quem fugiu com a empregada, quem
amancebou-se com o preceptor, quem descambou sua opção sexual para o sexo
oposto. A fauna é diversa também no caráter comportamental. Aquela enxugada
básica nos cabelos e sua boa King Size o acolheu, com a velha calça de pijama
proibida de sair em público, uma ceroula modificada, nada de gaiola com porta,
os pássaros precisam escolher, é de direito. E Rodrigo sonhou. Um sonho
repetido. Que estava numa tarde de sábado na cozinha da casa dela, sua
inspiração. Enquanto ela preparava trêmula o café no fogão, ele chegou por trás
e lhe deu um abraço, juntando os corpos. Pediu-lhe que ficasse imóvel, afastou
seus cabelos e percorreu o pescoço encostando de leve sua respiração, brisa
sobre a pele, ela arrepiou-se toda. Chegou em seu ouvido, disse em voz rouca
uma das frases mais simples e mais espetaculares – e infelizmente mal empregada
em tantas vezes – que uma pessoa humana pode construir: “eu quero o teu
amor”. No sonho, a água ferve, ela desliga, mas não há café, eles terminam o
sábado no quarto dela entre lençóis & travesseiros, risadas & êxtases,
pelúcias & vinho. O que varia de sonho para sonho, é esse instante
pós-revelação, quanto aos olhares, às vozes, aos beijos, agarros e etc. O certo
é que banhos quentes e cafés, harmonizam com as vidas frias. Às 13:00 toca o despertador,
ele se levanta com cuidado para não machucar o pássaro desperto horas antes.
Mais uma vez, aquele sonho. A quarta vez no ano, ainda em agosto. Talvez,
quando setembro vier, ele aprenda com a primavera que tal sonho, motiva-se
justamente quando ele está acordado. Parece que a insônia, é o equilíbrio
perfeito. Restaram a Rodrigo três perguntas. Qual a diferença entre sonho e
realidade? Falta-lhe gentileza? As flores servem como critério?...
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