terça-feira, 14 de novembro de 2017

Epitáfio Lateral












Epitáfio Lateral 

Era um homem bom. Apesar de não manter bons relacionamentos. Por exemplo, com os laticínios. Nem os compostos de trigo ele aceitava bem. Aprendeu sobre o mal causado também pelas outras três coisas brancas, alimentares. Tardiamente, pois foram a causa de sua derrocada, até porque ignorara que disseram para ele no início da faculdade que a morte vem pela boca. Tinha tanta paz em sua solidão, que começou a investigá-la, em senso crítico. Paz também era coisa branca, poderia estar lhe prejudicando de alguma forma. Mas a atribuição de cores é outra convenção humana, na verdade o que difere é a incidência dos raios de luz sobre elas, as coisas. Isso não modifica a cor vista, mas pode mudar a convenção. Então, aos 53 anos de idade, ele descobriu que a paz não é branca. Que a paz é negra. Está presente nos feijões, nas amoras, jabuticabas, uvas escuras, soja preta, gergelim e chás pretos, até no arroz negro, os tais flavonoides. Completa-se, vigente na escuridão total. Não à toa, a sabedoria humana escreve historicamente nas lápides o “descanse em paz”. Não há luz sob o túmulo. Os raios não chegam lá. Os homens vivem construindo obstáculos que impedem a propagação da luz. Outro exemplo, com as pessoas que promovem obstáculos. A morte mais tradicional é aos domingos. Segunda-feira quase ninguém vai ao cemitério. Local vazio, torna os cedros mais verdes. Aprendeu ainda que os jazigos não são obstáculos, são passagens. Caminhos para outras tentativas de se encontrar a paz. Porque paz, é no final uma coisa incolor. Ninguém a vê. No máximo, pode senti-l a. O bom homem se orgulhava da ascendência francesa destacada no sobrenome da família em relevo no alto do mausoléu. Flores vermelhas na caixinha lateral da tumba. Quem pôs, achava que o céu fosse apenas azul e branco...    


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