Dois Bifes
Conheço bem a Silva Jardim. A avenida.
Seus horários e lados de melhor tráfego. Sei também dos motoqueiros, e sua
falta de educação com a própria vida em relação ao risco que assumem. E o que
dizer dos motoristas do transporte especial, eles é que merecem ser conduzidos
à parte. Não basta a metrópole com crescimento não programado, tem que vir a
chuva, a tempestade como cereja do bolo de caos com recheio de gente. Os alagamentos
das galerias pluviais, as árvores velhas e ocas. E os condutores, que eu não
sei para onde vão, quem sabe eles também não. Não há espaço para argumentos no
trânsito daqui, tem apenas um tempo muito curto para decisões. Isso remete à
arbitrariedade. Uma espécie de lei darwiniana. Dentro dos possantes com ABS,
EBD e ESP, boys & seniors fazem suas letrinhas quase despencarem no
asfalto, aquaplanagem zero, iludiu o vendedor. Os ônibus, todos eles, e sua aparente
imunidade material, conferida apenas aos filiados ao SINDIMOC. Seus passageiros
são considerados animais indo para o matadouro, com três dedos nas mãos e
sapatos de camurça no temporal. No meio disso tudo, os ultravulneráveis pedestres,
bolinhas de carne num jogo de fliperama. O vermelho dos expressos disfarça o
sangue, o cinza dos ligeirinhos engana os ossos e o amarelo dos convencionais
mistura com as hemácias e dá um tom alaranjado à morte, banalizando-a e
minimizando a vida. Otávio era um cara legal. Cansado de ter patrões, aderiu logo
ao UBER e foi pra rua atrás dos 75% que lhe restaria das corridas. Vendeu as
coisas, comprou um seminovo preto. Ele achava um trabalho mais justo do que na supervisão
da fábrica de aglomerados. Toda noite tinha o suficiente para um pouco de carne,
feijão, arroz ou outras misturas paulistas para ele, a esposa e o piá. Foi
naquela torrente de quarta-feira à tardinha, que encontrou o primo encharcado no
ponto de ônibus na frente da rodoferroviária, deu-lhe carona. No caminho, com a
féria do dia garantida, pararam para comer um espetinho. Boas risadas,
lembranças. Na esquina da casa de Mariano, dois criminosos sem gravata abordaram o
trabalhador. Abortaram a existência do pai da criança, o casamento da mulher. Levaram
o carro e pouco mais de R$150, a maioria entrava por cartão de
crédito. As gotas de sangue no chão do carro, perderam a cor. Naquele final de semana, foram 17 assassinatos na capital e região. Andar pela
cidade doente é uma loteria. Eu me enganei, pois a chuva vem é para aquietar as temperaturas
corporais, as ideias mentais, apaziguar os ânimos e as velocidades, atenuar as imprudências, relativizar perigos. Um texto não é uma chuva, portanto não apaziguarei inventando que o primo viria mais tarde a se casar com a viúva neste drama verídico com nomes trocados. Mas as autoridades consideram tudo isso normal. O
patológico (social) é normal, para eles. Alegam que a culpa nem é das estrelas, é da própria sociedade, um irreparável mosaico de cores manchadas; repete-se: não há argumentos, arbitrariamente decidem o que falar e que isso é o certo e o suficiente; basta a palavra, porque o orçamento realmente não permite ações para quem é destituído de ideias, leia-se vontade política. Eles, não reconhecem os Silva, apenas se esbaldam na Jardins. A morte, é mesmo a única certeza do mundo, para
todo aquele covarde que despreza a mobilidade urbana como sendo uma eventual mas verdadeira solução
de continuidade no destino. Não é a presença do medo que assusta, é a falta de planejamento, diga-se: zelo pela coisa pública, o reconhecimento do próximo que também transita pela vida ao mesmo espaço e tempo. Juninho estava ansioso para contar para o pai a nota que recebeu na prova de História. “Mãe! A que horas ele chega?”...
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