sexta-feira, 22 de julho de 2016

Crônica Cotidiana 35



O Catador de Ilusões 
Sete da manhã, parei no sinal fechando no cruzamento da linha férrea. A dois metros de mim e sobre o trilho, um andarilho aguardava o instante de atravessar. Barba enorme e cabeleira, deixava apenas seus olhos de fora, quase um lobisomem subtropical. Uns quarenta e poucos anos, de estatura baixa, vestia uma jaqueta de nylon azul, uma calça de moletom preta e um tênis que não lhe servia. Levava na mão esquerda um grande saco plástico, com aquilo que ele achava importante dentro; corrijo: essencial, porque mendigos não levam consigo coisas desnecessárias. Meu momento parnasiano idiota, num gesto tipicamente caótico de metrópole, fechei o restante do vidro que mantinha aberto para não embaçar o carro, com a justificativa que apenas eu escondi e todo mundo veria, tentando preventivamente evitar que ele viesse me pedir algo que eu não tinha para lhe dar. Só havia eu e ele naquele recorte da cidade. Foi então que o estigmatizado pôs-se a andar-correndo, num trote feito em lenta marcha olímpica, quando fez-se o meu espanto: ele olhou bem nos meus olhos, levantou o polegar opositor e agradeceu positivamente por eu ter parado, repetiu o ato outra vez em seu trajeto. Coitado, ele agradecia sem saber que eu estava cumprindo uma ordem, dessas que tentam regular a vida em sociedade, ou seja, era nada mais do que a minha obrigação. Mas ele fez aquilo com tanta educação e naturalidade, que eu afastei o caráter ingênuo da coisa e atribui medo. Ele fez isso por medo. Medo talvez de que lhe insultassem...de que tocassem o carro em cima...que o atropelassem de novo... e por aí vai. Quando ele já estava na calçada, olhei novamente pelo canto dos meus olhos para rever a criatura, ele voltou seu olhar e me agradeceu com a cabeça pela última vez. Copiei-me de lágrimas, não chegaram a cair, mas eram lágrimas. Um misto de revolta, diante daquela realidade nacional. Revolta por não termos feito tudo aquilo que podíamos, ainda somos os mesmos e nos omitimos como nossos pais. Isto é, quem poderia ter feito algo por essa gente que não é como a gente, mas é muitas vezes mais gente que a gente que não faz nada por eles. O sinal abriu e eu acelerei abrindo a janela também para não chegar no meu destino com os olhos vermelhos. Vim, pensando nos obstáculos que aquele centauro não teve condições de enfrentar para que retrocedesse até ali, naquela situação desumana de sobrevivência capital. Parei, e resolvi pensar qual a estimativa que ele mesmo teria sobre seu futuro, o que significaria o amanhã para ele. Concluí, que significava nada. O importante era vender aquelas latinhas hoje, para tentar comer alguns pães com margarina que alguém vendia num barraco de tábua & zinco vizinho, à beira de um rio urbano qualquer, mal canalizado e há décadas morto. Não é possível que a morte não seja melhor que a vida. Vou chamá-lo de Cláudio. Se ele não tem CPF, ao menos um nome ele merece. Lembrei que eu não encontrei Deus naquela cena daquele marginalizado perambulando pela existência imprópria, seletiva, darwiniana, cruel. Mas lembrei também que eu encontrei algo em seu humilde agradecimento, veio da comunicação entre os seres. E eu não sei o que é. E não era, pois permanece até agora. Sei lá. Talvez aquilo que eu pensei ser o seu medo, fosse a simples coragem para olhar o próximo e fazer-lhe uma saudação. Cláudio cata latas de alumínio, enquanto eu dispenso ilusões em metais nobres: a realidade, é muito mais dele. Na padaria, comprei dois pães frescos, para neles passar manteiga em casa de alvenaria. Talvez a cidade viva mesmo em estado crítico de emergência, suplicando por uma nova consciência e juventude. Cláudio não pôde aprender nada nos discos... 


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