sábado, 16 de julho de 2016

A Entrevista




 Sete Parágrafos de Solidão 

Cumprindo o protocolo da consideração, mais uma vez é preciso traduzi-la, hoje com muito mais propriedade, devido ao tempo em que eles estão unidos, o que justifica esta manifestação, também com novas descobertas, a experiência. Ela é a sua companhia assídua dos almoços na maioria dos fins de semana. Vai com ele aos supermercados, lojas, demais estabelecimentos comerciais, bancos, clientes, trabalho, em todos os lugares. Quando adentra um ambiente, se sente acompanhado passo a passo, ela só se afasta quando ele conversa com alguém, polida. Educada, ele tem determinado e especialíssimo orgulho dela. 

Lado a lado, andam pelas calçadas, atravessam as ruas, as praças, os caminhos da cidade. Pedala com ele nas manhãs frias do parque. Comporta-se tranquilamente no banco de trás do carro como se nem estivesse ali, no trânsito. Como está com ela, evita olhar as mulheres nos lugares públicos, em respeito à sua presença; jamais por ciúme, isso inexiste entre ambos. Mas quando ele entra numa livraria, ela some de perto. Vai para outra sessão, sem sair do local. Até hoje não sabe por que ela faz isso; pensa que é normal como aquilo que se passa semelhantemente com as companhias normais, não sabemos tudo de alguém. Mas ele não aguarda nenhuma surpresa por parte dela, segue completamente tranquilo. 

Sua gratidão é infinita. Pois foi ela que lhe mostrou o lado verdadeiro da vida. A outra face das pessoas, o avesso das aparências, a cor das essências, o limite dos sonhos, o lugar dos desejos. Seu senso crítico e sua opinião, suas reflexões e suas ponderações, tudo fora lapidado por ela. Ela lhe ensinou sobre a voz do silêncio, o olhar para o nada, o gosto do nunca, o toque em ninguém, o perfume da falta. À noite, lhe convida para se sentar ao teclado e escrever sobre a vida trocando ideias, pensamentos e conclusões sobre o homem, a mulher e nossa existência. A emoção que ele sente quando escreve ao invés de viver, talvez seja próxima a do cego quando ouve. 

Até encontrou razão para encher sua taça única, seu caneco particular, seu copo individual para matar as suas sedes de não sei quê. Ela o impulsiona à cozinha preparar alimentos básicos para a energia do cotidiano metabólico. Faz esteira na mesma sala, além de alguns exercícios ao lado do colchonete. Toma banho com ele, inteiramente nua, dividem a água fervente nestes invernos permanentes. Vez em quando ele chega ao clímax solitário para relaxar o organismo hormonal. É ela quem escolhe o próximo livro que ele ainda não leu dentre aqueles que tem. Decidiram em comum acordo abandonar radicalmente os meios de comunicação. Brincam e passeiam os quatro, sendo dois cães. Em contrapartida, levou-a até o mar e até a floresta algumas vezes, que folia sua alegria. Adotaram a música como fé, é quando somam cinco. 

Aprendeu tudo isso, através da sua maestria mais que profissional: humana. Ela ainda lhe disse sobre o significado de Deus e os interesses das religiões, ele fez base ateísta. Contou o sentido do espírito e que ele não precisa ser santo. Com ela, solidificou seus valores, afastando-se dos diferentes, praticamente todos ao seu redor. Assim, ele ficou sabendo que tinha uma missão específica. Isolada, nula de mutualidades, reciprocidades, ‘feedbacks’ afetivos. Não está aqui para plantar nem colher sentimentos, ele veio para no máximo louvar os alheios já existentes. Sim, ele cuida muito bem dela. Tanto que nem mais periga ela lhe abandonar e deixá-lo bailando nas mãos de outra pessoa disfarçada de amor fora de época com fantasia de papel. 

Ao “oirártnoc” de qualquer teoria que pudesse planar sobre sua tese, ele nos confessa que não há um grão ou uma gota de tristeza sobre a mesa do teclado, tampouco em seus arredores. Isso não é coisa de superfícies, de velocidades, para gente que luta contra o próprio tempo querendo ganhar seu espaço. A coragem de assumir esse tipo de relacionamento, é para poucos. O que não quer dizer ser contra os pares de amantes, nada disso. Mas é outro tipo de sensação. Quando algo assim vem com aprendizado, é ao mesmo tempo preventivo sem precisar chegar a ser terapêutico: ele não adoece. Deu um outro norte para sua esperança, voltada então para tantas outras coisas da vida, totalmente longe dos individualismos, dos egos. É conduta que lhe permite extrair e compartilhar ao seu modo a beleza de todas as coisas da natureza, dentro daquilo que nasceu para embelezar nossas existências. 

Foi o que ele me relatou sobre a Solidão numa entrevista. Explicou desta forma por quais motivos ele não mais se relaciona afetivamente com as pessoas. É porque não acredita que haja neste mundo alguém livre para amar. Falou que o amor é um voo duplo, que não admite carga de nenhuma espécie. Quando se descobre que o companheiro está levando algo em sua bagagem, despencam do céu, tornam-se sentimentos cadentes. Embora muita gente continue assim em órbita da felicidade - oscilando entre brigas e conveniências - a felicidade necessita do chão. Um voo sobre a vida, com natureza de chão. É o jeito meio estranho de ele estar feliz, ele mesmo diz. E conclui com um sorriso sincero após uma piada inteligente, aperta minha mão, uma saudação e vai-se embora para algum lugar indeterminado. 


- Em nenhum momento da entrevista ele mencionou a palavra coração. Um ser mental, por excelência. Não vi rancor em seu desamor. Pareceu ter amado uma vez, tal a maneira peculiar de tratar sobre o assunto. Mesmo assim, sendo ele um descrente nessa variante de relação humana, admirei aquele homem, cujas palavras acabaram me ensinando sobre algumas coisas em minha própria vida. Tanto que já não sei se tenho de verdade alguém comigo. Parece que estamos juntos por medo. Medo por não voar linearmente nas alturas. Medo de aprender sobre a outra forma de vida possível e não menos agradável que professa e educa a Escola da Solidão. 

Repórter B. Azeredo 



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