Sete
Parágrafos de Solidão
Cumprindo
o protocolo da consideração, mais uma vez é preciso traduzi-la, hoje com muito
mais propriedade, devido ao tempo em que eles estão unidos, o que justifica esta
manifestação, também com novas descobertas, a experiência. Ela é a sua companhia
assídua dos almoços na maioria dos fins de semana. Vai com ele aos supermercados,
lojas, demais estabelecimentos comerciais, bancos, clientes, trabalho, em todos
os lugares. Quando adentra um ambiente, se sente acompanhado passo a passo, ela
só se afasta quando ele conversa com alguém, polida. Educada, ele tem
determinado e especialíssimo orgulho dela.
Lado
a lado, andam pelas calçadas, atravessam as ruas, as praças, os caminhos da
cidade. Pedala com ele nas manhãs frias do parque. Comporta-se tranquilamente
no banco de trás do carro como se nem estivesse ali, no trânsito. Como está com
ela, evita olhar as mulheres nos lugares públicos, em respeito à sua presença; jamais por ciúme, isso inexiste entre ambos. Mas quando ele entra numa
livraria, ela some de perto. Vai para outra sessão, sem sair do local. Até hoje não sabe por que ela faz isso; pensa
que é normal como aquilo que se passa semelhantemente com as companhias normais,
não sabemos tudo de alguém. Mas ele não aguarda nenhuma surpresa por parte
dela, segue completamente tranquilo.
Sua
gratidão é infinita. Pois foi ela que lhe mostrou o lado verdadeiro da vida. A
outra face das pessoas, o avesso das aparências, a cor das essências, o limite
dos sonhos, o lugar dos desejos. Seu senso crítico e sua opinião, suas
reflexões e suas ponderações, tudo fora lapidado por ela. Ela lhe ensinou sobre a
voz do silêncio, o olhar para o nada, o gosto do nunca, o toque em ninguém, o
perfume da falta. À noite, lhe convida para se sentar ao teclado e escrever sobre
a vida trocando ideias, pensamentos e conclusões sobre o homem, a mulher e nossa
existência. A emoção que ele sente quando escreve ao invés de viver, talvez seja
próxima a do cego quando ouve.
Até
encontrou razão para encher sua taça única, seu caneco particular, seu copo
individual para matar as suas sedes de não sei quê. Ela o impulsiona à cozinha
preparar alimentos básicos para a energia do cotidiano metabólico. Faz esteira
na mesma sala, além de alguns exercícios ao lado do colchonete. Toma banho com
ele, inteiramente nua, dividem a água fervente nestes invernos permanentes. Vez
em quando ele chega ao clímax solitário para relaxar o organismo hormonal. É
ela quem escolhe o próximo livro que ele ainda não leu dentre aqueles que tem.
Decidiram em comum acordo abandonar radicalmente os meios de comunicação. Brincam
e passeiam os quatro, sendo dois cães. Em contrapartida, levou-a até o mar e
até a floresta algumas vezes, que folia sua alegria. Adotaram a música como fé, é quando somam cinco.
Aprendeu
tudo isso, através da sua maestria mais que profissional: humana. Ela ainda lhe
disse sobre o significado de Deus e os interesses das religiões, ele fez base
ateísta. Contou o sentido do espírito e que ele não precisa ser santo. Com ela,
solidificou seus valores, afastando-se dos diferentes, praticamente todos ao
seu redor. Assim, ele ficou sabendo que tinha uma missão específica. Isolada,
nula de mutualidades, reciprocidades, ‘feedbacks’ afetivos. Não está aqui para
plantar nem colher sentimentos, ele veio para no máximo louvar os alheios já existentes. Sim, ele
cuida muito bem dela. Tanto que nem mais periga ela lhe abandonar e deixá-lo
bailando nas mãos de outra pessoa disfarçada de amor fora de época com fantasia
de papel.
Ao
“oirártnoc” de qualquer teoria que pudesse planar sobre sua tese, ele nos
confessa que não há um grão ou uma gota de tristeza sobre a mesa do teclado, tampouco em seus arredores. Isso
não é coisa de superfícies, de velocidades, para gente que luta contra o
próprio tempo querendo ganhar seu espaço. A coragem de assumir esse tipo de
relacionamento, é para poucos. O que não quer dizer ser contra os pares de
amantes, nada disso. Mas é outro tipo de sensação. Quando algo assim vem com aprendizado,
é ao mesmo tempo preventivo sem precisar chegar a ser terapêutico: ele não
adoece. Deu um outro norte para sua esperança, voltada então para tantas outras
coisas da vida, totalmente longe dos individualismos, dos egos. É conduta que
lhe permite extrair e compartilhar ao seu modo a beleza de todas as coisas da natureza, dentro
daquilo que nasceu para embelezar nossas existências.
Foi
o que ele me relatou sobre a Solidão numa entrevista. Explicou desta forma por
quais motivos ele não mais se relaciona afetivamente com as pessoas. É porque
não acredita que haja neste mundo alguém livre para amar. Falou que o amor é um
voo duplo, que não admite carga de nenhuma espécie. Quando se descobre que o
companheiro está levando algo em sua bagagem, despencam do céu, tornam-se
sentimentos cadentes. Embora muita gente continue assim em órbita da
felicidade - oscilando entre brigas e conveniências - a felicidade necessita do chão. Um voo sobre a vida, com natureza
de chão. É o jeito meio estranho de ele estar feliz, ele mesmo diz. E conclui com um sorriso sincero após uma piada inteligente, aperta minha mão, uma saudação e vai-se embora para algum lugar indeterminado.
- Em nenhum momento da entrevista ele mencionou a palavra coração. Um ser mental, por excelência. Não vi rancor em seu desamor. Pareceu ter amado uma vez, tal a maneira peculiar de tratar sobre o assunto. Mesmo assim, sendo ele um descrente nessa variante de relação humana, admirei aquele homem, cujas palavras acabaram me ensinando sobre algumas coisas
em minha própria vida. Tanto que já não sei se tenho de verdade alguém comigo. Parece que
estamos juntos por medo. Medo por não voar linearmente nas alturas. Medo de aprender sobre a outra forma de vida possível
e não menos agradável que professa e educa a Escola da Solidão.
Repórter B. Azeredo
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