segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Crônica Cotidiana 40



Água Para Bois 
Sujeito passa o almoço dominical de confraternização inteiro grudado no smartphone para no final se despedir agradecendo a maravilhosa companhia dos demais, que foi um prazer estar com eles, parabéns aos pais e até mais. É uma variante de dependência psíquica, relacionada a um distúrbio de caráter que determina um comportamento onde se explicita e quase se ejacula a falta de educação. Relação de dependência entre uma pessoa e um objeto. Não há remédio para isso, a indústria farmacêutica jamais conseguirá isolar componentes da personalidade de alguém, para a partir daí fabricar um antídoto. Comecei pelo fim, pois os relacionamentos interpessoais estão à beira da falência mesmo. Umas trinta pessoas dispostas à mesa comprida na churrascaria do fim da estrada com carnes nobres e outras nem tanto. Estavam a comemorar o primeiro aniversário de um bebê que foi antecipadamente colocado a dormir de um jeito como se ele não tivesse sistema respiratório. Alguns pais acham que seus filhotes devem permanecer envoltos numa redoma como se fossem pacientinhos de alto risco nas incubadoras neonatais. Difícil acreditar que no fundo daquele cesto lotado de mantas e cobertores há um pequeno sobrevivente, com dois pulmões a todo vapor lutando contra a anóxia. Nunca se pode conversar direito, devido à disposição longitudinal da mesa, mas a tradição não faz nada para melhorar isso, o povo insiste em se juntar assim. Que se calem os distantes entre si. Não bastasse, metade dos convidados manuseava aparelhos de última geração. Trocavam com os demais, fotos, mensagens, notícias e todos os tipos de superfluidades imagináveis entre fatias de picanha e goles de refrigerantes de cola; não passa o pratinho do cemitério, mas atravessa a paisagem mais um celular cruzando a mesa com uma informação de outro aplicativo crucial para a manutenção da vida em sociedade. Sem os tais, talvez eles se considerassem mortos no mundo, atrasados zumbis. Aliás, o mundo foi transportado do espaço ao redor para a tela de led. Esta, a tela de led, um tanto engordurada - pelos dedos do barbicha, um dos alimentadores dos trend-topics da comunicação moderninha - de tanta obsolescência já pedia para ser trocada pela sua nova descendente, muito mais cara, mas à prova de banha. Tentando se fazer presente, Nazário olhando para seu pocket-world, falava alto para alguém repetir o que tinha dito. Sílvia, sua bela esposa, assistia o marido esfregar o dedo naquele telemóvel, imaginando a quanto tempo ele não fazia isso na chuleta dela - ele levava o troço pra cama, toda noite; depois de conferir as últimas do whats, ele enfiava; enfiava o carregador na tomada e o plug do carregador no telefone. E ele digitava e mostrava (lá na Marumby) coisas de trinta em trinta segundos, o povo consentia na base do que legal, enquanto ela sorria com o canto da boca seca de sal grosso e marido mais chucro ainda. Como já dito, havia cerca de quinze indivíduos naquele niver fazendo o mesmo. Ou seja, a mesa estava completamente dominada pela web, tinha wi-fi no restaurante, senha liberada automaticamente. Depois da sobremesa que ele comeu sem ver o que era, levantou-se e falou a merda lá de cima. Perguntei-me o que representou a ida deste ser patuleico àquela reunião. Não há respostas, para aquilo que jamais será dúvida. Basta pensar e bem pouco. Não teve parabéns, o aniversariante continuou sedado e entregue à baixa pressão do calor no seu “bebê-conforto”, um verdadeiro micro-ondas de pano & plástico. Antes de irem embora, Rosimette, a mãe meninota, puxou o seio para fora a alimentar João Vítor; Gilberto, o garçom da maminha, ficou excitado, era o seu fetiche aproximar peitos de espetos. O leite saiu salgado, a criança chorou de calor e todos foram para suas casas defecar o banquete. Não souberam novidades, nada combinaram, sequer recordaram um tempo recente que morreu: já não tinham mais saudade, nem perspectivas ou vontades, voltaram de lá como se não tivessem ido, nada foi construído. Quando Habermas apontou a transição do paradigma da consciência para o comunicativo, pensei que vinha coisa boa. Mas que nada, você sai da minha frente que eu quero passar. Aquilo que deveria vir para agregar, faz do seu mau uso a segregação da dialética, da comunicabilidade, da interpessoalidade dos seres. Não sem revelar as carências relacionais e as inseguranças de cada um em seu meio. Fizeram da palavra um instrumento de mão única. A tecnologia demitiu o polegar opositor, repassando sua função ao indicador. Sílvia masturbava-se diariamente com o dedo médio... 




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