segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Crônica Cotidiana 39



Os Cinco Espelhos 
Diz a lenda - tão urbana que poderia ser considerada apenas um conto - que o avistamento de cinco espelhos em série, faz o homem morrer sem sentir dor. Entre loiras fantasmas, piratas das Mercês e grávidas da Praça da Ucrânia, é a mais sensata, já que existe uma mínima possibilidade de acontecimento, seja por simples coincidência. Relacionam com a transposição das fases da vida e o consequente olhar para o passado: infância, adolescência, juventude, fase adulta (até agora não encontraram uma palavra que exprimisse isso num só termo) e velhice. Após o quinto espelho, se você chegou lá, é hora de partir pois não haverá mais espelhos pela frente. Talvez já não haja mais o que rever lá atrás. Ele fotografou a sequência, ficou bonitinho para uma rede social onde só se escreve coisa triste. A vida é tão bela, que é preciso equilibrá-la com coisas menos belas. Armando Bott aguardava o filho na saída do colégio, na rua vicinal. Chamam de Jardim Ambiental. A cada dia, um novo ambiente retrata uma fatia da sociedade local. Anteontem, dois rapazes desocupados tragavam a liberdade advinda da dependência química em forma de pacau, fininho, beise, aceso para garantir a larica do almoço; ao pé do cipreste, como se fosse natureza, chamando bucolicamente os alunos que passassem por ali a fazer o mesmo, desde que adquirissem o seu produto, da lata. Ontem, duas meninas matadoras-de-aula acomodaram-se por ali para iniciar a atividade tabagística, com muita tosse e pose para a garotada reparar na coragem de sua transgressão, nos passos que deram a frente, mesmo que em direção ao abismo de sua saúde. É maresia pra todo lado, a juventude pinta de azul petróleo as nuvens chumbo que exalam ao redor de si. O mesmo tom artificial que dói aos olhos comprovar quando se vê o pulmão nicotínico extraído de um cadáver acadêmico. Cores fortes na vida, têm sim. Armando sabia que no inverno, tudo é mais realçado. A sensibilidade, por exemplo. Visual, auditiva, tátil, do nariz à boca, tudo tem mais força. A ausência de calor torna as pessoas mais inclinadas àquilo que representa força, poder, magia. Um café forte, uma decisão poderosa, um instante mágico. Todos enfileirados, os automóveis. Uma placa de pare lá na frente. Ingênuos, todos partirão dali ignorando o outro espelho, do lado direito. Pobre metáfora, tentando insinuar que os sujeitos preocupam-se muito mais com o movimento do seu lado esquerdo, do que com a calmaria da calçada oposta. Vale mais o coração do que a mente. O seu coração, pois o dos outros não sai na foto. Ele se lembrava das relações possessórias que vivera, que vivem ou sobrevive a maioria dos que ele conhece. Por uma brisa, que passou e instantaneamente se foi, imaginou uma relação livre, se era possível um troço desses. Mas era brisa, e se avoou. As pessoas precisam definir para onde vão, antes de assumirem relacionamentos; para tanto, necessitam saber para onde já estão indo quando sós. Não pelo compromisso, mas pela forma de caminhar, eis o segredo. Todo conteúdo necessita de um formato. Lá fora, nas ruas. Porque não cabe dois corações lado a lado na mesma rua. Por isso se atropelam, se matam e se enganam. No lado do carona do carro de Armando, o banco vazio. Sheila preconizava o lugar do motorista. Jamais admitiria ser conduzida por ele, mesmo que ele só quisesse levá-la a alguns momentos de felicidade. Às vezes, determinados jardins não são ambientes adequados para uma florada, mesmo quando junto à rua, ao movimento, o fluxo de energias. Outra estória que segue e o povo continua escolhendo errado os seus super-heróis. O amor é torto, quando os espelhos são todos externos... 





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