E quando eu morrer? Quem determinará
meu estado de morbidade? Removo as interrogações, para elaborar um texto
objetivo, sem especular. Alguém avistará o já corpo. Vai se aproximar; afinal,
mesmo sem pensar nisso, as pessoas sabem que os cadáveres não podem ficar ali,
onde pereceram. Há apenas um lugar para eles, o tradicional. Sobre a terra, à vista humana, somente os vivos merecem trânsito, sem se importar se
estão bem vivos ou não. Então aquela pessoa verá que eu morri. Pelo pulso, pela
falta de respiração ou por outro sinal mórbido qualquer. O celular retirado do
bolso, tentativa nula de avisar alguém com o aparelho em segredo, chame-se uma
autoridade, de outra forma. O primeiro profissional a aparecer por perto será
um policial. O segundo, um funcionário do IML, isso após vinte e oito curiosos amadores. Não haverá necessidade de
médicos, a não ser que esteja passando um por perto, meio que perdido. Claro, que no seio flácido de uma multidão ávida por saciar seu lado nefasto de presenciar mortos in loco.
Ninguém deita em definitivo nas ruas, nas praças e em nenhum lugar sem estar morto. Morrerei
na horizontal, talvez. Se dentro de um automóvel, a culpa não será minha. Como
pedestre, certamente faltará cuidado da minha parte. Mas pode não ser lá fora.
Aqui dentro, o mais provável último passo. Se eu já sei quem me buscará
oficialmente lá, resta saber quem é que, nesta casa que não é minha, irá me encontrar falecido.
Sem falar no tempo que vai demorar para saberem da minha morte. Mas esta será
apenas uma morte a mais, na sequencia de tantas que já aconteceram em meu
caminho. Gente, parentes, animais, empregos, esperanças, sonhos, afetos, amores,
enfim, tanta coisa já sucumbiu em minha vida. O bom, é que eu serei uma morte a
mais apenas para mim, os outros nem considerarão. Atribuirão uma normalidade,
compatível ao que eu fui. Como se justificassem meu passamento. Coitado, não
amou nem foi amado, estava se demorando demais por aqui, não tinha o que fazer,
já foi tarde. Um banho, algum produto especial e algodões vedando orifícios
corporais, o terno mais bonito, alguém trouxe. Do Instituto para o rabecão e
deste para o velório, sem séquito algum. Lá, quem sabe umas dez pessoas, em suficientes seis horas farão o social. Não passarão os opositores, os ignóbeis, os indiferentes
nem os desamores: todos, seguirão inertes, intocáveis, imóveis quanto ao meu
decesso. Um pouco de talco para colorir esta vida black-tie que eu levei nas
coxas. Borrifos de alfazema para ajudar as poucas flores em torno da rigidez
cadavérica. Um último adeus para quem já estava deveras longe dos teimosos
sobreviventes de mim. Fim das noites de insônia e das alergias; fim das músicas
lentas e das poesias. Do sonho possível, do desejo marinho, da paz distópica. Pronto, não justifiquei companhias: não enlutarei
ninguém. A tampa do ataúde não terá janela para observar a festa dos
decompositores. Um pequeno féretro até a capela, o cerimonial de descida e o
céu livre para todos os tipos de pássaros que não gorjearam em minha natureza, eu não tive gabarito para acompanhá-la. Haverá sol
neste céu. É para lá que eu não vou. Ainda tenho algumas coisas incertas para
resolver por aqui, antes do próximo embarque na litorina branca e silenciosa...
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