sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Memórias do Cisne Branco - I



Trinta e Dois 
Muita comida pra pouca gente. Onde tem muita gente, às vezes falta comida. Alguma lei da sabedoria eterna tem validade na passagem do ano? Daquelas feitas Talião. Ou é o mérito, tão combatido critério de justeza onde o absurdo permite comparar desiguais. “Tenente...o senhor permite que a viatura pegue a minha esposa na volta do Jardim do Sol, eles vão fazer uma faxina lá.” – disse o cabo de serviço naquela tarde de réveillon no Comando do 5º Distrito Naval. “...Pode. Mas não fale pra ninguém.” – consenti como único oficial presente naquela unidade em terra. Ajeitei o meu coldre, e subi à Praça D’armas, no meu primeiro 31 sozinho de estar: eu não sabia que aquilo seria uma anunciação, quase profecia. Do outro lado do orgulho da responsabilidade por ser o mais antigo e portanto o responsável por aquela Organização Militar, estava o prenúncio do meu futuro, e eu não vi. Um Capitão de Fragata com voo perdido, depois de jantar e antes de ir embora me contou a história em que havia, uma vez, pego um mar 8. Disse que ali, teve a certeza da morte, pensou nas suas crianças, mas a tempestade marinha passou e ele pode continuar missão. Ele, foi pro chão. Pedi ao Taifeiro que a minha ceia fosse servida às 23 horas, dando tempo para que ele fosse comemorar a virada com todos os outros praças no refeitório. Logo depois, desci e fui dar uma volta lá fora. De costume, as famílias do pessoal de serviço estava lá, apoiando. Um marinheiro do rancho pediu que eu liberasse a abertura da geladeira dos refrigerantes porque o que tinha não ia ser suficiente. Semanas depois, o Intendente veio me cobrar as bebidas; não paguei, isso é problema da União e do oficial desprevenido quanto à sua função. À beira da meia-noite, dirigi-me á mesa, umas 30 pessoas: “Em nome do C5ºDN, desejo a todos um feliz 1993, cheio de paz, prosperidade, saúde e sucesso para vocês. E, claro, com muita música.” Nem sei por que fui terminar dizendo aquilo. Mas cumpri o meu papel. Escutei os fogos da beira do cais do porto, luzes salpicando lá do centro de Rio Grande/RS. O ano novo estava entrando e eu sem ninguém familiar por perto. Não houve tristeza, era uma sensação estranha que eu só vim compreender sentido agora, por estes tempos. Eu não queria estar ali, mas a obrigação me chamou e eu fui, até com espontaneidade. Fiquei contente por ter quebrado alguns protocolos e ver toda aquela gente do mar comemorando como se estivesse em sua própria casa. Não foi preciso de álcool para soltar a sua alegria. Do lado de cá, um vazio com cara de futuro. Vontade de largar a pistola no chão, tirar a farda e nadar até São José do Norte. Mas eu não sei nadar assim, acho que não aguentaria. Voltei para o meu quarto, apaguei a luz, olhos abertos, projetei o ano vindouro. Não dormi e um logo mais fui plotar um dos navios do Comando na carta náutica. O Rebocador de Alto Mar Tritão, estava fundeado em Santa Catarina. Em janeiro, o Ministro da Marinha mandou todos os primeiros-tenentes embora no país inteiro, era mais barato pagar soldos de novos Guardas-Marinha. Desembarquei do serviço temporário, nadei até aqui na vida, aguento firme a missão de navegar. Não cheguei a nenhum porto, que fosse seguro como considero meus valores, não atraquei. Minha natureza é nômade. Preciso voltar ao mar, é lá que poderei me conduzir direito. No litoral a solidão é mais fluida, mais leve, mais bonita de ser sentida. Ela é dinâmica, percorre as ondas do ventre à crista. Dilui-se no rasinho, escorre pelos pés descalços. Quando quiser, um mergulho para refletir, pulinho na base. Não há tristeza onde sobram pássaros, verdes, areias, chuvas finas e sóis, tudo que a natureza disponibiliza para promover equilíbrio. O mar, a melhor companhia para a solidão. Hei de voltar, logo. Não sou compatível com a secura da gente dessas famélicas capitais... 


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