quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Crônica Cotidiana 52




Obrigada Por Tudo 

Relacionamentos (não é preciso dizer ‘afetivos’). Condição onde as pessoas começam a deixar de serem pessoas. Tornam-se algo à mercê, ao dispor, à deriva. Perdem lenço e documento, chão e ar. Brincam com fogo de palha, afogam-se com água em gotas. Uma confusão de elementos descaracteriza aquela outrora individualidade, da inserção do ser humano em seu meio. É o tal do “braço a torcer” em nome da união. Abdica-se das convicções, pior: do aprendizado. As convicções não são pétreas, podem se transformar. Mas o ensino que a vida trouxe... que absurdo. No começo isso é mascarado pela esperança aliada da ingenuidade, pela entrega, pelo carinho, dedicação, flores, gozos e perfumes soltos pela ‘casa’ do ser amado. Mas não temos a chave da despensa, do sótão, do porão do outro. Aos poucos, começam a sair de lá, coisas inimagináveis. Revelam-se pensamentos, cometem-se atitudes, confessam-se intimidades de toda natureza, nunca sem causar o espanto, agente de união (ou adesão) fundamental no medievo filosófico. Ab initio, torna-se um jogo. Agora, namorar ficou para trás e as peças estão sobre a mesa, chegam por mensagens, olhares, presentes, conversas e silêncios. Além daquele braço, o outro braço e a primeira perna já estão comprometidos, em torção. Não fica por aí, torce-se a voz, a vontade, a vida a dois. É o fim da naturalidade da relação, quando se começa a ver que existem forças que a mantém, forças ocultas, explícitas, veladas, de todo jeito. E são elas que sustentam o “estamos juntos”. Olha-se para o acostamento na autoestrada, que paisagem linda lá fora, um dos dois queria pular deste veículo aparentemente não desgovernado. Será que alguém se machucará caso pule? Onde dói mais, aí dentro ou lá fora? E por que não dar meia volta, parar o carro, e cada um seguir o seu destino lá naquele trevo divergente por onde passaram desapercebidos? Não, o que importa é estar na pista, como dizem os espertos, a malandragem da convivência humana. É muito triste passar um fim de semana sozinho, melhor “aguentar”, seja off road ou on the rocks, esteja sempre on line. As manias. Os caprichos. Os dengos. Os pitis. Os barracos. Os medos. As certezas. Quantos monstros cabem numa só caixa craniana? São monstros reais, mais ferozes e letais do que os quadrinhos japoneses. E aqui, não tem herói para salvar ninguém. Os dois sentados na sala, os monstros andando em volta, mudos. Qual deles será o próximo a se rebelar? Está é a única emoção que sobrou, adivinhar o motivo da próxima briga. Aposta onde não se ganha nada. E passam-se semanas. meses, anos, a perspectiva morta num caixão imaginário bem posicionado na garagem, apontando para a saída. Já não usam mais formol, os preparos químicos que conservam almas, seus corpos e sentimentos um dia inocentes sonhadores, agora são de amargar estômagos, arranhar gargantas, um refluxo que não cessa. Principalmente à noite, na hora de se deitar. As características pessoais se juntam às más interpretações, e da relação se fez rotina, do destino se fez retrocesso. Ao mesmo tempo em que tanto combinavam, tanto se identificavam em gostos, hobbies e sexo, que não viram o asfalto acabar. Às vezes é assim, inflamos o bom para ocultarmos o mau. Alceu, carregado de futuro, não conseguiu demonstrar à Edna a sua verdade. Ela, carregada de passado, não conseguiu mostrar a ele, a verdade dela. Interrompiam-se, com álcool e transas, rangos e discussões. Deixaram de ser aquele algo, mesmo que construído, mas indefinido, amorfo, não identificado, para voltarem a ser pessoas. E no instante em que voltam a ser pessoas, desprezam este axioma humano, e passam a se menosprezar e tratar o outro não como pessoas, mas como ‘ex-aquilo’. Fim da estrada, ele voltou a sonhar com a paz, ela a sonhar com outra união. Dizem que o sonho acordado afasta pesadelos, monstros e CIA. Tudo bem. Mas a tal cara-metade, tampa de panela, alma gêmea, é incompatível com a vida. Todos os casais têm algo torcido, não vemos por causa das roupas. Todos os casais têm seu dilema, não sabemos por causa dos disfarces. Poucos são os casais que andam nus. Melhor mesmo, é ir morar numa praia deserta, poder tomar banho sozinho, pelado, sem hora pra voltar nem coisa pra explicar. Sem lar para lutar, apenas com cadeira de praia e guarda-sol. Porque aquilo que o mar exige do nosso lado para ser bem contemplado, é um mínimo de paz e o máximo de simplicidade... 

EDITORIAL - Às vezes eu penso que o homem não é um animal tão político assim. E que os (afetivos) relacionamentos, são como mudança para uma bonita casa moderna, construída sobre um antigo cemitério indígena...



Nenhum comentário:

Postar um comentário