segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Contos da Cripta




Aurora Boçal 
O pesadelo faz abrir os olhos. E se continua. E sai da madrugada, afronta a alvorada para surgir de pé na manhã do dia. E segue. Fatos, que não são impedidos. Circunstâncias, fatais. Relações esvanecidas. Pessoas, que vão morrendo. É tudo real, sem abstração. Tudo isso à luz do dia. Um destino implacável, quase impossível desviá-lo, um outro rumo. O corpo resiste, a mente sustenta e o coração aguenta. Idade, fragilidade chegando na cidade sem deus. A força resume-se na resistência, já não há mais ternura, guardada na estante por estar démodé. Dias secos e chuvosos, ensolarados e sem brilho, até a próxima noite de reflexões tardias. Um pouco de café para aquecer o peito. Repouso. O breu e as (des)cobertas. O caos lá de fora bate na porta do quarto. Quer entrar no sonho, refúgio dos meus desejos. Em minha terra, latidos de cães, que devoram os sabiás que ousam avançar sobre a trincheira dos meus valores. Rasantes de morcegos, passos no telhado, barulhos na cozinha, chamados ao longe. Uivos noturnos que de dia vêm em forma de indiferenças, não reconhecimentos, poucos casos, incompatibilidades, desinteresses alheios e tantos outros desapontamentos até o crepúsculo. Mas é justamente ali, naquela antessala da noite, que se inicia a minha vitória cotidiana. Minha vontade se faz infantaria, afasta o pesadelo que recua até a fronteira. Ganho terreno, sozinho. Não tenho aliados. Nesta batalha comigo mesmo, defendo soberania num território só meu, a minha parte na vida, papel na existência. Talvez um dia, saberei onde é o limite em que posso chegar. Uma voz feminina seria bem vinda, não sou hipócrita. Mas eu prefiro que apenas me leiam. Não quero ninguém lutando comigo, com risco de quedar em campo. Sei que essa coisa de matar amores e amigos traidores, ainda me condenará. Só porque eu os quero livres. Livres de mim. Eu, com meu pesadelo. E aquela velha e absurda ideia de que a minha história não serve para ser contada. Mesmo assim, preciso aumentar minhas prateleiras. Não tive netos. Não deixarei a ninguém o legado dos meus cadernos... 



Nenhum comentário:

Postar um comentário