Aurora Boçal
O pesadelo faz abrir os olhos.
E se continua. E sai da madrugada, afronta a alvorada para surgir de pé na
manhã do dia. E segue. Fatos, que não são impedidos. Circunstâncias, fatais.
Relações esvanecidas. Pessoas, que vão morrendo. É tudo real, sem abstração. Tudo
isso à luz do dia. Um destino implacável, quase impossível desviá-lo, um outro
rumo. O corpo resiste, a mente sustenta e o coração aguenta. Idade, fragilidade
chegando na cidade sem deus. A força resume-se na resistência, já não há mais
ternura, guardada na estante por estar démodé. Dias secos e chuvosos,
ensolarados e sem brilho, até a próxima noite de reflexões tardias. Um pouco de
café para aquecer o peito. Repouso. O breu e as (des)cobertas. O caos lá de fora bate na porta do quarto.
Quer entrar no sonho, refúgio dos meus desejos. Em minha terra, latidos de
cães, que devoram os sabiás que ousam avançar sobre a trincheira dos meus
valores. Rasantes de morcegos, passos no telhado, barulhos na cozinha, chamados
ao longe. Uivos noturnos que de dia vêm em forma de indiferenças, não
reconhecimentos, poucos casos, incompatibilidades, desinteresses alheios e
tantos outros desapontamentos até o crepúsculo. Mas é justamente ali, naquela antessala
da noite, que se inicia a minha vitória cotidiana. Minha vontade se faz infantaria, afasta o
pesadelo que recua até a fronteira. Ganho terreno, sozinho. Não tenho aliados. Nesta batalha comigo
mesmo, defendo soberania num território só meu, a minha parte na vida, papel na
existência. Talvez um dia, saberei onde é o limite em que posso chegar. Uma voz
feminina seria bem vinda, não sou hipócrita. Mas eu prefiro que apenas me leiam.
Não quero ninguém lutando comigo, com risco de quedar em campo. Sei que essa
coisa de matar amores e amigos traidores, ainda me condenará. Só porque eu os
quero livres. Livres de mim. Eu, com meu pesadelo. E aquela velha e absurda ideia
de que a minha história não serve para ser contada. Mesmo assim, preciso
aumentar minhas prateleiras. Não tive netos. Não deixarei a ninguém o legado
dos meus cadernos...
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