quarta-feira, 1 de abril de 2015

Três Contos de Réis - SOSSEGO



[Investir no sossego do próprio coração é algo tão complexo por causa da sua simplicidade. Porque ser simples é uma das coisas que mais dificulta a nossa vida. Investir no sossego do próprio coração é não abrir uma brecha, que poderá virar uma represa, para alguém que não está disponível afetivamente. É prestar atenção nos sinais e indícios que a pessoa dá, logo nos primeiros encontros, do tamanho do sofrimento ou da alegria que ela poderá lhe proporcionar. É saber-se só em quaisquer situações, mesmo acompanhado, pois as consequências de nossas escolhas são absolutamente nossas. 
Investir no sossego do nosso próprio coração é saber que aquilo que está doendo deverá ser extirpado e não manter apego ao sofrimento, por mais que o uso do bisturi cause quase a mesma dor. É proporcionar-se bons momentos divorciando-se de tantos lamentos. É não adiar sofrimento postergando decisões tão necessárias. É não se acomodar com a falta de excitação pelas coisas, pessoas, trabalho. É saber-se merecedor de experienciar um amor inteiro, intenso, extenso, imenso, verdadeiro... Recíproco! É aumentar, um pouquinho a cada dia, o seu tamanho. É ter a certeza e a confiança de que as coisas têm um encaixe, mas que é preciso deixar ir, ou ir ao encontro, ou conformar-se com o desencontro, ou esquecer, ou lembrar-se de outras coisas, ou relacionar-se de outra forma. 
Investe no sossego do próprio coração quem não rumina o que machuca, quem não fica descascando a ferida impedindo que a mesma cicatrize, quem não se disponibiliza de maneira subserviente e em tempo integral ao ponto de ser desvalorizado ou descartável, quem não aceita menos do que merece: coisas pela metade. Investe no sossego do próprio coração quem sofre, grita, chora, mas cresce! Quem não se repete, quem se surpreende consigo mesmo, quem trabalha o desapego, quem se abre para as coisas que possuem mais calor e sensibilidade. 
Investir no sossego do próprio coração é coisa que não vem com a idade, mas com a ideia de que se pode vivenciar um momento de paz e repouso, é desocupar o peito para abrir espaço para o novo, é entregar-se ao desconhecido com inocência e totalidade, é não ter medo de pronunciar verdades, é ser honesto consigo, com o outro. 
Investe no sossego do próprio coração quem não se contenta com pouco.] 

[Sossega, coração! Não desesperes! Talvez um dia, para além dos dias, encontres o que queres porque o queres. Então, livre de falsas nostalgias, atingirás a perfeição de seres. Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo! Pobre esperança a de existir somente! Como quem passa a mão pelo cabelo e em si mesmo se sente diferente, como faz mal ao sonho o concebê-lo!  Sossega, coração, contudo! Dorme! O sossego não quer razão nem causa. Quer só a noite plácida e enorme, a grande, universal, solente pausa antes que tudo em tudo se transforme.] 

[Vila do Sossego 
É bem aqui, onde eu estou bastante tranquilo. Neste lugar, onde há uma paz tamanha, a qual reina relativa, pois é paz de um só. Uma paz que não é múltipla, por ser singular, individualizada, nada além. Seria uma pequena paz em forma de broto capaz de florescer uma paz plural, não foi necessário. Nas cercanias de seu domínio, é total. Dali para fora, terra de ninguém. Um sossego contagiante, afastando tristezas e decepções. Com isso, acaba por expulsar revezes, medos e rancores. Aqui, onde as lágrimas são doces, o céu é mais alaranjado, o sol mais vermelho, o mar é cristalino. Tem areia fina, estrondosas árvores com vasta sombra para meus pensamentos se movimentarem. Algumas pessoas passam pelas ruas, acenam e vão-se embora. Não há barulhos, fora os avisos da água em forma de ondas e chuvas. Espaço sem compromisso, papel em branco sem contrato, dedos livres, cama grande e espaçosa. Sem pedidos, nem favores. Sem ordens, nem descumprimentos. Aqui onde não existem humores, temperamentos, devaneios ou interpretações. De onde não se precisa fugir, voltar ou se arrepender. Onde nem se faz obrigatório permanecer. Passam longe sorrisos, aborrecimentos, quaisquer emoções. Local em que a música é poética e a poesia é musical. Ordem, sem ter de haver progresso. Podem as madrugadas passar sem estrelas, os dias nublados, as tardes vazias, tudo sem problema algum. A pia livre, a geladeira também, o fogão limpo, armários relativamente abastecidos. Sem bagunça, sem ternura, sem futuro. Inodoro, insípido e incolor de percepções. Aqui onde não se divide, não se diminui, nem se soma nada, tampouco se multiplique. Ausência de saudade, de dor, de lembranças e de expectativas. Um banheiro, um cama de casal, um par de sofás, um automóvel, uma bicicleta. Uma aparelhagem de som, dois computadores, três instrumentos musicais e quatro travesseiros. Cinco cadeiras, seis eletrodomésticos, sete cômodos, oito prateleiras. Nove pratos e dez pares de calçados. E um sem número de outras coisas, mais ou menos importantes, em meio a um amontoado de acessórios para higienes pessoal, mental e espiritual. Inclusive, dois animais. Isso tudo, não é uma casa: é a minha morada, isso sou eu. Esse é o meu jeito. Mas é aqui nesta vila, que eu sei amar a vida, do jeito que ela não quer: com o sossego absoluto da relativa solidão...] 
- Alvaro del Mar  


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