sexta-feira, 3 de abril de 2015

Contos sob a copa das Cores


 MELITTA 102 



Outras marcas, também não havia. Todos os filtros numeração 103. Exagero para o café de um homem só, corrijo: de um só homem. Provavelmente noutros mercados, pois aquele bairro era de gentes que vivem aglutinadas, as chamadas famílias, principalmente já não mais adultas. Cafés por lá são coisas plurais, com múltiplas bocas ao entorno de uma mesa, sob o mesmo forro, entre paredes conhecidas a separar privacidades inesperadas. Não havia prédios, naquele mar de casas horizontais. E ele querendo verticalizar dali. Não levou, até porque não precisava, tanto que não estava na lista imaginária. Ele nunca tinha colocados filtros de café em qualquer lista, jamais procurou. Levava, quando se deparava com o momento, algo a ver com o destino. Carrinhos lotados, povo se preparando para o feriado. Ele e uma cestinha provisionando apenas mais um fim de semana aumentado. Peixes e chocolates saíam em ritmo alucinante, rumo à adoração cultural de uma tradição inventada: a festa perde espaço para o comércio. Confundem-se, misturam-se, mas coexistem sem importar harmonia. Talvez algumas uniões fossem assim, ele pensou. E veio o dia. Direto na xícara, o café Aviação seria experimentado pela primeira vez, quem sabe o transportasse a algum lugar bonito. A manteiga do mesmo clã parecia avalizar a tentativa. Os cães a seus pés, tentando sorrir naquela manhãzinha santa para tantos outros, mas eles não conseguem sorrir, pena que humanos não têm rabo: não poderiam esconder felicidades tímidas - pensando bem, assim está bom. Réstias de sol, a natureza correspondendo um pouco melhor naquela terra governada por nuvens déspotas e absolutas, súdita gente branca sob um céu quase sempre invisível. Ele nada sabia de religião, além da semântica da palavra. Pela primeira vez, ele começou a pensar em alguém. Alguém indeterminado, especulando como seria uma pessoa que pudesse estar ao seu lado. Alguém que recebesse o que ele tem de bom, que compartilhasse coisas em comum e que trouxesse novidades. Até aí, normal para a maioria dos desacompanhados. Então ele foi filtrando, liquefazendo o pó negro e espetacularmente aromatizante. Alguém que gostasse de cafuné e de massagem demorados. Mais água no pensamento e no coador. Alguém que ora o ouvisse muito e falasse bastante sobre um monte de coisas, ora silenciasse juntinho ou ate mesmo em separado para escutar o som da vida, ambas as vezes com propriedade. Repetiu a quantidade de água, e esperou encher a xícara: alguém que se permitisse ser amada, se identificando e se reconhecendo pelo jeito que ele sabe amar, e vice-versa. Colocou o terrível açúcar demerara, como se fosse a conclusão da hora: vida amarga, esse alguém não existe. Não é preciso tentar. Não é preciso procurar, ele sempre esteve certo em seu comportamento inerte em relação às aproximações. Tal qual os filtros de café. Quando já se tem resposta, não há espaço para quaisquer questões. Porque hoje em dia, as pessoas não querem simplesmente amar, elas querem amar e outras coisas, as quais não têm nada a ver com sentimento. Isso polui as relações, superlota mercados, transborda coadores, esfria cafés, entristece cães. Não adianta ele pensar em alguém ao seu lado, por isso ele não tem essa conduta de busca, nem esse hábito do sonho, tampouco essa mania da esperança. Melhor ele seguir com ela por dentro, onde ele salvaguarda a doçura determinada que nunca provou, onde ele mantém o seu calor específico que nunca dele se aqueceu. Solo onde ele sepultou desejos, reflexões e milhares de palavras combinadas, numa espécie de lavoura moderna, sem riscos temporais de vicejar. O maravilhoso aroma do café, cujo paladar foi alterado por aquela coisa chamada açúcar. O maravilhoso sentido do amor, cujo sabor foi alterado por aquela coisa chamada vida... 


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