MELITTA 102
Outras
marcas, também não havia. Todos os filtros numeração 103. Exagero para o café
de um homem só, corrijo: de um só homem. Provavelmente noutros mercados, pois
aquele bairro era de gentes que vivem aglutinadas, as chamadas famílias,
principalmente já não mais adultas. Cafés por lá são coisas plurais, com
múltiplas bocas ao entorno de uma mesa, sob o mesmo forro, entre paredes
conhecidas a separar privacidades inesperadas. Não havia prédios, naquele mar
de casas horizontais. E ele querendo verticalizar dali. Não levou, até porque
não precisava, tanto que não estava na lista imaginária. Ele nunca tinha
colocados filtros de café em qualquer lista, jamais procurou. Levava, quando se
deparava com o momento, algo a ver com o destino. Carrinhos lotados, povo se
preparando para o feriado. Ele e uma cestinha provisionando apenas mais um fim
de semana aumentado. Peixes e chocolates saíam em ritmo alucinante, rumo à
adoração cultural de uma tradição inventada: a festa perde espaço para o
comércio. Confundem-se, misturam-se, mas coexistem sem importar harmonia.
Talvez algumas uniões fossem assim, ele pensou. E veio o dia. Direto na xícara,
o café Aviação seria experimentado pela primeira vez, quem sabe o transportasse
a algum lugar bonito. A manteiga do mesmo clã parecia avalizar a tentativa. Os cães a seus pés, tentando sorrir naquela manhãzinha
santa para tantos outros, mas eles não conseguem sorrir, pena que humanos não têm rabo: não poderiam esconder felicidades tímidas - pensando bem, assim está bom. Réstias de sol, a natureza
correspondendo um pouco melhor naquela terra governada por nuvens déspotas e
absolutas, súdita gente branca sob um céu quase sempre invisível. Ele nada sabia de religião, além da semântica da palavra. Pela primeira vez, ele começou a pensar em alguém. Alguém indeterminado,
especulando como seria uma pessoa que pudesse estar ao seu lado. Alguém que
recebesse o que ele tem de bom, que compartilhasse coisas em comum e que
trouxesse novidades. Até aí, normal para a maioria dos desacompanhados. Então
ele foi filtrando, liquefazendo o pó negro e espetacularmente aromatizante.
Alguém que gostasse de cafuné e de massagem demorados. Mais água no pensamento
e no coador. Alguém que ora o ouvisse muito e falasse bastante sobre um monte de
coisas, ora silenciasse juntinho ou ate mesmo em separado para escutar o som da vida, ambas as vezes com
propriedade. Repetiu a quantidade de água, e esperou encher a xícara: alguém
que se permitisse ser amada, se identificando e se reconhecendo pelo jeito que ele sabe amar, e vice-versa. Colocou
o terrível açúcar demerara, como se fosse a conclusão da hora: vida amarga, esse
alguém não existe. Não é preciso tentar. Não é preciso procurar, ele sempre esteve certo em seu comportamento inerte em relação às aproximações. Tal qual os filtros
de café. Quando já se tem resposta, não há espaço para quaisquer questões. Porque hoje em
dia, as pessoas não querem simplesmente amar, elas querem amar e outras coisas, as quais não
têm nada a ver com sentimento. Isso polui as relações, superlota mercados, transborda coadores, esfria cafés, entristece cães. Não adianta ele pensar em alguém ao seu lado, por isso ele não
tem essa conduta de busca, nem esse hábito do sonho, tampouco essa mania da esperança. Melhor ele seguir com ela por dentro, onde ele salvaguarda a doçura determinada que nunca provou, onde ele mantém o seu calor específico que nunca dele se aqueceu. Solo onde
ele sepultou desejos, reflexões e milhares de palavras combinadas, numa espécie de
lavoura moderna, sem riscos temporais de vicejar. O maravilhoso aroma do café, cujo paladar
foi alterado por aquela coisa chamada açúcar. O maravilhoso sentido do amor, cujo
sabor foi alterado por aquela coisa chamada vida...
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