domingo, 26 de abril de 2015

Contos Urbanoides



UM PULO NO CENTRO 
- E a contramão da história 

Há tempos, eu não ia ao centro. Só o cortava, rodando sobre o asfalto frio e opostamente congestionado do coração de uma metrópole. Às vezes, precisamos ir ao centro da cidade. Mas eu não sei se o centro da cidade é o centro das pessoas, parece não ser. Pessoas no centro, não significa que elas estejam centradas, reflexão difícil essa. E é preciso ir ao centro, porque lá existe inspiração. Uma fonte inesgotável de inspiração, para quem tem sede da sua. Eu vinha do deserto. É, eu vim de ônibus. Depois do ofício, ia desviando das fumaças secundárias de fumantes nas calçadas do câncer anunciado, que bom que eu faço apneia terrestre. Comecei pela praça do mártir. Atravessando-a na diagonal de sempre, sinais de sintomas doentios da grande capital. Duas prostitutas gordas lotavam um banco de quatro lugares. Cafetões, michês aos montes. A banalização do sexo espalha-se pelas tardes, desde manhã. À noite, provavelmente algo que não sei ao certo o nome, daquilo que se perde num submundo de sinônimos. Todos eles, são feridas do tecido social, dentro de um Estado policialesco que é mais juiz indiferente do que operador da saúde física, mental e principalmente social dos seus habitantes. Ao lado do elevado histórico envidraçado, uns tirando fotos sem se importar o que era aquilo, muitos turistas com poucos equipamentos. Outra gordinha, vendedora das lojas ponto com, tentava me seduzir com um aparador de barba que segundo ela “cortava qualquer coisa”: educadamente deixei-a corada para tentar ensiná-la a não viver em duplo sentido, arriscar-se assim não compensa. Na livraria do lado da Boca, ausência preocupante de livros de Odontologia. Dentro da brasileira pastelaria mais bonita da cidade, alguém pagava em alta voz uma aposta de futebol ao funcionário, deu vinte e pegou dezesseis reais de volta, no mínimo suspeito, mas também insignificante. Então, o retorno para casa, sessenta minutos corajosamente a pé, para observar em caminhada algo que pudesse trazer e deitar em papéis, a partir da extinta pharmácia com nome de deusa, tentando seguir a simbólica linha vermelha do descobrimento sem sair dela. Abriram as portas dos hospícios, dos armários, ex homens desfilam sua libertada feminilidade no calçadão, entre loucos e preconceituosos. Meninas novas erotizando-se dentro de roupas mínimas em detrimento de sua adolescência. Velhos babando abandono e fracassos relacionais por entre os quiosques. Uma trupe de punks se achando na moda. Bela morena decotada arrumava seu salto sentada no banco provocando desejo em outra mulher provavelmente desconhecida ao seu lado que fingia estar conversando no celular. Na frente da mais antiga universidade do país, um playboy démodé correndo em seu PT Cruiser, com adesivo de um tucano fantasiado de Brasil no vidro lateral, acelero para economizar atropelamento. Passei por um conhecido, que de tão magro talvez não fosse ele, hoje em recuperação química: ainda cursa Psicologia. Sinais para pedestres não oferecem tempo suficiente para se atravessar nos sinaleiros, trânsito caquético, ausência de doutores no tráfego político municipal. Cabelo negro e lindo voava na tarde numa bicicleta, pensei que era a bela, infelizmente não, foi um japonês...devia levar muitas encoxadas no ônibus, por isso mudou seu meio de transporte. Na Reitoria, uma bailarina balzaquiana ostentava seu exagerado silicone como se fosse um troféu permanente. Seu Chaim me cumprimentou na livraria, lugar modesto demais que traz uma deliciosa sensação de estar na casa da vó: tem café e histórias, tem livros, e caminhos. Eu subo a ladeira sulista sem paralelepípedos, mais bicicletas se arriscam na faixa exclusiva dos coletivos, os quais não têm piedade de nós. Um meliante saiu do meu caminho, frustrando sua provável má intenção, repelido pela minha barba vermelha-e-preta-e-branca. Acho que Vanessa da Mata passou por mim, mas devia ser Vanessa da Pinha. Os frentistas não me reconheceram longe do automóvel, vida de associação. Num Café ectópico, pessoas happy comendo a hora. Uma lembrança, outra saudade, nenhuma lágrima no caminho. O corpo agradecendo pelo exercício, a mente pelas reflexões. Não foram tiranas estas léguas, houve relaxamento no final. Por ter-me inspirado novamente. Inspirar é pairar no ar no céu do nosso mundo, e dali contar o que se vê, o que desapareceu, o que jamais voltará e o que se sente, até mesmo em relação a tudo isso, quem sabe um expirar. Porque inspirar-se, é respirar o centro e depois ir à periferia das pessoas, equilibrando as andanças existenciais. Tenho em mim, o centro e a periferia. Não possuo instrumentos, meios que liguem estes dois polos. Sou livre para transitar: eu não amo ninguém. Nem ela, que um dia me fez movimentar. Meu erro, foi fazer isso em sua direção, por ver sentido em seu centro. Por isso, quando penso nela, me sinto ao longe, pairando no ar. Na mirante periferia do céu do meu mundo...




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