quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Les Réminiscences


 A Feia 

A feia. Até que ela tem alguns espelhos em casa, mas prefere apenas um. É aquele em que ela se interpreta como feia. Através dele, percebe defeitos plásticos, desvios estéticos e outras tantas imperfeições proparoxítonas. Linhas irregulares, traçam desde a silhueta externa até os orifícios faciais, compondo também o relevo da pele e dos cabelos, passando pela superfície dos seios e das nádegas, tudo errado segundo ela. Olhar profundo, nariz proeminente, lábios carnudos... outros lábios, salientes, principalmente quando excitada, mamilos idem... um quadril generoso... e uma juba de dar inveja à Lily Monstro. Mas tudo era feio na casa-corpo da Feia. Para compensar tanta falta de autoestima, ela decorava sua casa-casa como uma arquiteta especialista em interiores. Móveis e flores, camas e plantas, cozinha e banheiro, tudo era bonitinho, limpo e cheiroso. O único pó da casa da Feia era o de café. A beleza feia de Dona Feia, se estendia para além da imagem que projetava de si naquele anteparo preferido. Sim, tal feiura atingia seus movimentos e inclusive, sua performance sexual. Ela se achava estabanada, trôpega, escorregadiça. Na horizontal, sentia-se na diagonal, bissetriz, quase uma tangente de tanta não adaptação à gente como a gente. Credo, até suas sensações voltavam-se para o feio. Dizia ela, que provocava sono nos outros, ao invés de ânimo, vontade, desejo, excitação, tesão. Pudera, o pensamento é assim mesmo para toda aquela que se considere feia. Pela estrada afora, ela cantarolava “ninguém me olha, ninguém me quer, ninguém me chama de mulher”. Enfim, ela se achava realista e modesta com os predicados que a natureza lhe deu. Nas entrelinhas, aduzia que é simples como a água: seu perfume é Boticário, tem gosto de chuchu e sua cor é bege. Mas a Feia tem um detalhe que poucos sabem: ela é mentirosa. Diferente de estar enganada, ela é mentirosa sim. Engana-se o cego com o arranha-céu, o surdo com o rap. Mente, muita gente. Mas a maioria das mentiras é no sentido de obtenção de vantagens, defesa de interesses, isenção de responsabilidades. Feia, não. Ela mente pra carvalho, paratodos. Mas ela mente é para ofuscar a verdade, a sua verdade. Alguém com conhecimento da psique humana, saberia explicar com argumento o que se passa com Feia, a mulher mais bonita da cidade. Ou então, alguém com percepção da essência humana, pode poetizar com maestria o que se passa com Feia, a pessoa mais encantadora da Terra. Magia, erotismo, sedução. Feia não é ágil nem veloz na cama; ela busca e encontra ligações mais profundas e duradouras; prazeres sensoriais, olhares, saliva, toques em ritmo de música: uma bossa inicial seguida no compasso do blues com alegria de jazz pra sambar no final; massagens, lhe remetem aos céus sem lenço nem documento; trabalha com os braços, dá chaves de coxas, mexe e remexe o ventre como ninguém jamais se aventurou; percorre e curte que lhe corram a pele com a pressa de um quiromante, que cruzem toda a sua tez feito hábil navegador; altíssima sensibilidade nos pés e mãos, nos seios e no pescoço; adora ser beijada, lambida, chupada e amada até o(s) orgasmo(s), com todo o carinho que possa lhe oferecer e compartilhar um homem, não um macho. Uma fêmea, quem sabe - lembre-se que machismo é diferente de feminismo. E ela quer mais. E quer bis. E tem, e chega e se vai. Feia é assim. Um ser em recusa à sua particular beleza estelar e à própria dimensão disso. Estrábica pelo juízo de si mesma, equivocado, encontra-se incapaz de aceitar a ótica alheia, verdadeira. Sua sensualidade, está também em tudo aquilo que ela não diz. Aquele espelho, não tem vidro, é apenas um quadro sem moldura, onde ela compensa fingindo ser real um mundo contrário. Talvez um dia ela se mude, e não leve o quadro. Talvez um dia ela assuma sua beleza, e não minta mais pra carvalho, nem paratodos. Talvez esta noite ela se livre dos lençóis que a escondem na cama. Talvez hoje ela esteja tão quente, tão linda, que chegue ao ponto de berrar no instante do clímax solitário. Um grito compatível, que alcance as estrelas. Que atinja a magnitude de sua beleza. Ela é tão bonita... ela é tão bonita que na certa, eles a ressuscitarão... Eu não copio: eu aplico. Eu não invento: eu demonstro. Eu não minto: eu traduzo. Eu não vivo: eu apenas não me desfaço... 

minha,
    utopia
em teu ouvido horizonte
em silêncio dizer-te,
    um monte
das verdades que eu sabia..  




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