sábado, 17 de dezembro de 2016

Contos de Dominação




Trocando os Presentes 
E não é que ele chegou perto da sua aposentadoria. Não se fala que ele “está no fim da vida”, não temos controle algum sobre o crivo de cada chance, aquilo que chamam tempo. Olhou para trás, uma bela carreira profissional. A falta de filhos, a ausência de parentes, a presença de pouquíssimos amigos, uma velha para chamar de sua e muitos valores em espécie acumulados no banco do país. Imóveis alugados, em praia longe, para que os daqui não frequentassem, assim orientou a velha (que sempre foi velha, desde seus 14 anos). Tão velha que há mais de década se mandou da forçosa ou conveniente relação que mantinham à morosos 25 anos. Uma geração inteira desperdiçada pela pseudocompanhia. Sem necessidade, Cruélia foi tentar a sorte no norte, já que aqui no sul o marasmo da vida suficientemente levada ou melhor, da rotina farta pela qualidade de vida – leia-se conforto, alimentação, emprego e estabilidades – havia atingido limites da paciência: ela queria algo novo. Com esforço, conseguiu, e fugiu. Modesto ficou aqui, a cruzar fins de semana a só e sem sol, olhando as paredes, tomando vinhos caros e dedilhando seu pênis como compensação de ausências, que na verdade eram inexistências. Um monólogo estendido no tempo. Com sua amada longe – mesmo que não merecesse tal título em função dos mais de dez anos sem praticarem sexo e cinco dormindo em quartos separados enquanto morava nesta cidade – ele resolveu parar e olhar para trás. A frustração de não ter tido filhos arrebentou as comportas depois dos 50, começou a sair da boca para fora, típico vazamento, mas era. A filha de Lázaro dá ordens lá de cima. Comanda os passos dele por aqui, limitando suas incursões na própria família, da qual ela quer que ele fique distante. Um boneco, ventríloquo, seria isso mesmo o nosso Modesto? Pior do que isso, porque bonecos são de plástico, ele é humano. Em tese, teria todas as condições de se rebelar, digo, para ser feliz. Tem, tais condições, mas não as utiliza. É a submissão, em nome dos interesses de Cruélia, disfarçados de preocupação com o servo, mas que na real era com seu patrimônio. Ele fingia que não via, a história da mulher que era tia e só ele não sabia. Sem poesia, foi levando a vida no cabresto. Sem música, no silêncio. Sem arte alguma, na solidão. Mas com ele, é o pior tipo de solidão: aquele onde se inventa alguém que já existe para dizer que existe amor. Assim, não é uma solidão criativa, produtiva, libertadora, que até se ele quisesse, lhe permitisse encontrar alguém digno de companhia. Não. É a solidão que alguns chamam de servidão, um substituto artifício preenchendo espaços de naturalidades. É de causar indignação tal situação que já virou solidez, já fechou portas e páginas de casa e livro dele. A mãe, idosa, esperava-o para mais um Natal. Mas desta vez, Modesto não vai, pois Cruélia clama por ele lá perto do Equador. Mais para tirá-lo triunfalmente da família na data importante, do que pela sua companhia. Ele vai, todo faceiro, passar as festas com sua chefe, diretora, presidente, seja lá o que for em se tratando de poder. Note-se ainda, que ele não vai apenas porque é mandado, mas também, porque quer. Nunca, o livre-arbítrio deixará de estar presente. O destino inexiste, o que existe são as pessoas que desviam seus caminhos no sentido errado. Dá pena? Não sei...pena da mãe dele. Mais uma vez o conservadorismo e a omissão derrotaram os valores conceituais da humanidade, beirando a covardia. Viaja-se atrás do não sei quê, conduzido por um argumento sem combustível, que ele deixa no km 1 da estrada que abandonou. “Ela precisa de uma força”, alegou ele escrito num papelzinho moderno que chamam de mensagem. A mãe chorou, a família lamentou, o cachorro nem latiu, quando Modesto entrou no avião rumo à ilusão, na contramão de sua felicidade. Não há o que se fazer com pessoas que aderem voluntariamente ao auto-engano. Só nos resta, o lamento. Tanto mundo a ser conhecido por aí, e ele vai mais uma vez direto para o cárcere. Parece que a pior prisão, é a do lado de fora da cadeia. Lá dentro, há uma pena a ser cumprida por ordem legal. Aqui fora, a ordem é imoral. Coitado de Modesto. Tantos aniversários e ainda não aprendeu que o sol nasce no leste. "Senhor passageiro, o senhor já apertou os seus cintos...há tempos..."   



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