Trocando os
Presentes
E não é que ele chegou perto da sua
aposentadoria. Não se fala que ele “está no fim da vida”, não temos controle
algum sobre o crivo de cada chance, aquilo que chamam tempo. Olhou para trás,
uma bela carreira profissional. A falta de filhos, a ausência de parentes, a
presença de pouquíssimos amigos, uma velha para chamar de sua e muitos valores
em espécie acumulados no banco do país. Imóveis alugados, em praia longe, para
que os daqui não frequentassem, assim orientou a velha (que sempre foi velha,
desde seus 14 anos). Tão velha que há mais de década se mandou da forçosa ou
conveniente relação que mantinham à morosos 25 anos. Uma geração inteira
desperdiçada pela pseudocompanhia. Sem necessidade, Cruélia foi tentar a sorte
no norte, já que aqui no sul o marasmo da vida suficientemente levada ou
melhor, da rotina farta pela qualidade de vida – leia-se conforto, alimentação,
emprego e estabilidades – havia atingido limites da paciência: ela queria algo
novo. Com esforço, conseguiu, e fugiu. Modesto ficou aqui, a cruzar fins de
semana a só e sem sol, olhando as paredes, tomando vinhos caros e dedilhando
seu pênis como compensação de ausências, que na verdade eram inexistências. Um
monólogo estendido no tempo. Com sua amada longe – mesmo que não merecesse tal
título em função dos mais de dez anos sem praticarem sexo e cinco dormindo em
quartos separados enquanto morava nesta cidade – ele resolveu parar e olhar
para trás. A frustração de não ter tido filhos arrebentou as comportas depois
dos 50, começou a sair da boca para fora, típico vazamento, mas era. A filha de
Lázaro dá ordens lá de cima. Comanda os passos dele por aqui, limitando suas
incursões na própria família, da qual ela quer que ele fique distante. Um
boneco, ventríloquo, seria isso mesmo o nosso Modesto? Pior do que isso, porque bonecos são
de plástico, ele é humano. Em tese, teria todas as condições de se rebelar,
digo, para ser feliz. Tem, tais condições, mas não as utiliza. É a submissão,
em nome dos interesses de Cruélia, disfarçados de preocupação com o servo, mas
que na real era com seu patrimônio. Ele fingia que não via, a história da
mulher que era tia e só ele não sabia. Sem poesia, foi levando a vida no
cabresto. Sem música, no silêncio. Sem arte alguma, na solidão. Mas com ele, é
o pior tipo de solidão: aquele onde se inventa alguém que já existe para dizer
que existe amor. Assim, não é uma solidão criativa, produtiva, libertadora, que
até se ele quisesse, lhe permitisse encontrar alguém digno de companhia. Não. É
a solidão que alguns chamam de servidão, um substituto artifício preenchendo
espaços de naturalidades. É de causar indignação tal situação que já virou
solidez, já fechou portas e páginas de casa e livro dele. A mãe, idosa, esperava-o
para mais um Natal. Mas desta vez, Modesto não vai, pois Cruélia clama por ele
lá perto do Equador. Mais para tirá-lo triunfalmente da família na data
importante, do que pela sua companhia. Ele vai, todo faceiro, passar as festas
com sua chefe, diretora, presidente, seja lá o que for em se tratando de poder. Note-se ainda, que ele não vai apenas porque é mandado, mas também,
porque quer. Nunca, o livre-arbítrio deixará de estar presente. O destino
inexiste, o que existe são as pessoas que desviam seus caminhos no sentido
errado. Dá pena? Não sei...pena da mãe dele. Mais uma vez o conservadorismo e a
omissão derrotaram os valores conceituais da humanidade, beirando a covardia. Viaja-se atrás do não
sei quê, conduzido por um argumento sem combustível, que ele deixa no km 1 da
estrada que abandonou. “Ela precisa de uma força”, alegou ele escrito num
papelzinho moderno que chamam de mensagem. A mãe chorou, a família lamentou, o
cachorro nem latiu, quando Modesto entrou no avião rumo à ilusão, na contramão
de sua felicidade. Não há o que se fazer com pessoas que aderem voluntariamente
ao auto-engano. Só nos resta, o lamento. Tanto mundo a ser conhecido por aí, e
ele vai mais uma vez direto para o cárcere. Parece que a pior prisão, é a do
lado de fora da cadeia. Lá dentro, há uma pena a ser cumprida por ordem legal.
Aqui fora, a ordem é imoral. Coitado de Modesto. Tantos aniversários e ainda não
aprendeu que o sol nasce no leste. "Senhor passageiro, o senhor já apertou os
seus cintos...há tempos..."
Nenhum comentário:
Postar um comentário