quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Crônica Cotidiana 46



Cosa Nostra 
Na sala de espera do consultório médico enquanto a mãe falava com a secretária, o ser pequeno em seu colo apontava para o cantinho dos brinquedos manifestando vontade de voltar lá. Braço estendido, sem palavras, girando como se estivesse com uma peça na mão a ser encaixada num espaço onde o quase novo amiguinho não conseguia, olhos começando a marejar. Uma breve desconversa, e a mãe guiou-se para fora dali. Um gesto simples, que se repetiria tantas outras vezes na vida dele, das mais variadas formas, até impensáveis. A infância é rica em sinais ou anunciações que, infelizmente, são observados apenas por adultos; mas não por todos os adultos. Pessoas mais velhas acompanhadas por gente mais nova aguardando a sua vez para a sedante endoscopia anual, às vezes coladinha com uma colonoscopia, invasões orgânicas consentidas mais em nome do procedimento pecuniário que da saúde, porém, com discurso sempre em louvor desta. Pergunto-me quantos antepassados já morreram quando não havia exames invasivos, pela simples inexistência tecnológica deles: isso, a literatura médica não mostra, não classifica, não entra para as estatísticas. Claro, não temos a cultura preventiva, portanto a submissão a tais câmeras penetrantes ou perfurocortantes é situação corriqueira, normal e hodiernamente indicada, mesmo que evitável. Novamente, pergunto-me aonde termina uma especialidade médica, e qual o grau de dependência estabelecido entre os profissionais de saúde e os seus respectivos exames complementares: parece tudo infinito. Qualquer dia, os doutores serão dispensados, a máquina acusará as patologias diretamente pelo chip implantado no subcutâneo, nos tornando reféns de outros protocolos. O doutor apareceu, adentrou aquele ponto do estabelecimento para fechar a porta e tomar um pouco d’água mineral, mal cumprimentando os presentes, seus pacientes. Uma frieza que, aos olhos da profissão, é requisito elementar. Aos olhos do cidadão, é pressuposto básico de educação (ou falta de). O pragmatismo venceu de goleada a interação. Lógico, há outros médicos, bem diferentes daquele, ainda bem. Não me perguntei o que lhe moveu a fazer Medicina, não foi preciso. Imaginei vê-lo repentinamente lançado num front, ou largado no meio de uma assistência médica humanitária num país destruído por uma catástrofe natural, feito sem fronteiras... onde ele iria encontrar os papéis para requisitar tais exames aos planos de saúde que lhe abarrotam os bolsos ao cabo de todo mês? Sem falar direito com as pessoas, ele provavelmente sucumbiria ao próprio desdém, já que ignorava as disciplinas comunitárias e preventivas nos bancos acadêmicos. Mais seco que Dr. Plant, só o trato retal dos pacientes que tomavam preparo para buscar pólipos intestinais em seu consultório-clínica-ambulatório-minicentrocirúrgico, o imóvel era multifuncional. As faculdades de Medicina catapultam os graduandos para serem felizes nos grandes centros e arredores, atendendo somente os que podem pagar planos privados de saúde. A atenção básica, está sendo dilacerada com precisão de bisturi, no sentido do sucateamento do serviço público, via lobby político-jurídico-legislativo, em prol da sub-mega-hiperespecialização. Gripe? Procure outro. Dra Rose, a esposa de Plant, atendia criancinhas e as vacinava. Nem abria a porta do consultório, gritava lá de dentro o nome-vez-número da próxima, lembrei-me do gado na fila do matadouro. Depois de décadas, ainda não encontrei o significado da clássica frase “a Medicina é um sacerdócio”. Seria o dr. gastroenterologista um magnânimo enviado dos céus? Ou, antes disso, o dr. fez doutorado (para poder ser chamado de doutor)? Que espécie de deus ungiu missão ao Dr. Plant a ponto de que ele se tornasse um profissional tão árido quanto os recursos que recebe a universidade pública que o formou? E sua esposa, que evitava de propósito olhar nos olhos dos pequenos? O casal odeia os médicos cubanos, ou seja, aqueles mesmos que agora estão dando cursos na Ilha aos estudantes norte-americanos sobre medicina primária, preventiva e tais. Seria questão de gnose ou caráter, este ódio branco classista? Pacientes buscam a cura tão somente, a ponto de que a relação médico-paciente seja considerada supérflua e por isso desprezível? Certa feita, outro doutor me disse que se ele não atender um paciente a cada cinco minutos, morrerá de fome. Disse-me, pela web, pois clinica em Miami, eldorado burguês dos leitores das revistas de controle social dispostas sobre as mesas dos consultórios médicos país adentro. A coisa pública, necessita outra espécie de formação, outro nível de vínculo. Elos. Juquinha, o pacientinho, chegou em casa com uma amizade abortada; veria inúmeras vezes isso no futuro. Lá na frente, quando adulto, teria outro formato de sentimento amordaçado, também órfão de palavras, sua sina talvez. Plant e Rose, por tantos outros motivos que não cabem aqui, desprezaram o juramento na formatura. Sua oração, foi endereçada ao espaço. Espaço, para eles, é aquilo que eles demarcam como seu território, domínio particular e sacerdotal. Jamais como nação, jamais coletivo. Uma Nação, se constrói com diálogo. Diálogo, é o aproveitamento cívico do tempo... 



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